Em um mundo de fluxos acelerados, as estações se tornam mecas. Construções futuristas de azulejos e aço inox, simbolizam o I.D.H. dos países que as abrigam e têm a imponência proporcional ao tamanho dos espaços vazios e à imaculação das paredes. Quando inseridos nestes projetos arquitetônicos e de vigilância, os passantes são desencorajados a interagirem com o espaço e entre si. As aglomerações são suspeitas, o ar deve permanecer silencioso, o cheiro agradável, o ambiente climatizado, a limpeza em dia, o fluxo intenso.
Nos países “em desenvolvimento”, como o nosso, e nas megalópoles cosmopolitas e multiculturais, as intenções estéreis de 1° mundo que revestem as estações são insistentemente sabotadas pelas culturas dos outros mundos, nos quais a vivência coletiva é mais cultivada do que o espaço individual (e o número de trabalhadores informais é sempre maior). No Brasil, observamos os códigos de comportamento implícitos no espaço burlados e, com o tempo, ressignificados por conversas altas, celulares sem fones de ouvido, pixos, vendedores ambulantes e afins.
Atentos e afeitos aos efeitos da presença do povo nos espaços, a dupla realizadora Wagner & de Burca aborda, na vasta maioria de seus trabalhos, corpos periféricos e suas manifestações culturais. De microperformances individuais à comunidades como a da indústria gospel e dançarinos da Swingueira recifense, eles se dedicam à existências marginais que, em meio à invisibilização sistemática, se fazem ver e reivindicam seu protagonismo. Em Rise, entretanto, como o próprio nome aponta, o filme não explora o que já está manifesto, mas as possibilidades em ascensão, a potência desses tipos de existência nos não-lugares em que a arquitetura parece suceder em tolher as expressões do povo.
No universo — com a mesma proporção de vazio do universo real, diga-se de passagem — de uma estação-meca (tecnológica, enorme, canadense) sujeitos imigrantes (negros, árabes, latinos) começam a aparecer. A disparidade declarada entre os corpos e os espaços é elevada à décima potência pela fotografia clássica dos cineastas que, em um uso esparrado dos artifícios de transformação da realidade, chapam a profundidade do quadro e lançam luz sobre os sujeitos. Hiperdestacados do entorno, os passantes se tornam protagonistas do plano e um nível ainda mais elevado de magia cinematográfica nos permite ouvir os pensamentos e canções que guardam para si.
Reenquadrada para a escala humana, a amplitude opressora que reforça a pequenez e a solidão dos passantes se reconfigura para uma falta que convida ao preenchimento. Durante cada performance, o quadro se dedica exclusivamente aos pensadores, poetas e cantores. Na ausência de vigilância alheia, o templo se converte em um palco particular e o próprio vazio, manipulado por uma edição de som primorosa, passa a reverberar a voz e os movimentos dos sujeitos. A mudança de ângulo subverte a relação: se antes e historicamente, as personagens que partiram em diáspora para um país desenvolvido transitavam caladas e corridas pelos templos que reforçam o seu não-pertencimento às nações do futuro, agora, ao evocar a própria história, elas ascendem sobre ele.
Apesar de diversas expressões nos mostrarem uma subjetividade nuançada e a relação das personagens com sua ancestralidade, a estética minimalista dos cineastas que protagoniza, invariavelmente, a performance, descola as figuras não apenas do espaço, mas de sua história. Como em uma relação que estabelecemos com estranhos no metrô, percebemos (e imaginamos) o outro pela superfície, através de sua aparência e da expressão que ele nos oferece nesse breve contato.
A mesma construção controlada que nos priva de um entendimento mais complexo e rico das relações que tensionam esses não-lugares, por outro lado, imerge essas aparições em um suspense que, somado ao voyeurismo da leitura de pensamento e à virtuose das personagens, apresenta cada plano como um pocket show. A estática que se cria perpassa o corpo de quem assiste, sustentando a empolgação* para o próximo número e parece, também, unir telepaticamente as performances individuais desconectadas pelo espaço, sugerindo (ou já formando) novas comunidades/reunindo comunidades perdidas.
Em busca de uma visibilidade sistematicamente negada, existências imigrantes abrem seu espaço pessoal para a câmera e, através do cinema, transgridem e conquistam o espaço controlado dos não-lugares. Ao passo que cria um imaginário das relações que poderiam nascer desses territórios inférteis, Rise, ao se dedicar a pessoas e situações reais, também nos mostra que o mundo fantástico no qual sujeitos marginalizados saem da margem para triunfar sobre espaços de opressão já está dado, basta direcionar o olhar e espalhar a palavra.
*(Falo por mim e pelas cabeças dançantes ao redor)
este texto foi produzido como parte da Oficina Corpo Crítico – Cinema em Perspectiva: Reconfigurações do Fazer Crítico, ministrado pela crítica Kênia Freitas, durante o 21º FestCurtasBH.
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