As articulações entre três filmes exibidos em programas distintos do FestCurtas BH, me despertaram para a urgência de se pensar e intervir sobre os caminhos para os quais têm sido levado o território no qual cresci e habito. Mais que compartilhar a história de Minas Gerais, paisagens montanhescas, narrativas de colapso e prenúncios do fim do mundo tal qual o conhecemos, O Mundo Mineral (2020) de Guerreiro do Divino Amor, Mineiros (2019) de Amanda Dias e Inabitável (2019) de Loic Ronsse, se interpelam de maneira que seus argumentos podem ser complementados entre si. Nesses filmes, passado, presente e futuro articulam imagens que apontam a iminência da necessidade de se pensar e promover outras políticas de vida.
O filme de Divino Amor nos leva para as vísceras de um passado que é oficialmente chamado a coexistir no presente. Arquitetura, culinária, paisagens são orgulhosamente classificadas como coloniais pelo discurso oficial. Sob diversas camadas de imagens, arquivos jornalísticos, cores e músicas bucólicas, O Mundo Mineral nos revela um passado violento, que alvejou e alveja formas de vida que não cabem em seu universo cristalizado.
A superficção trabalha através de uma linguagem debochada que tem êxito em compor seu argumento através do exagero de formas, cores, sons. Extremamente doce e contida também é a fala da mulher branca, vestida em trajes comportados, que nos guia em torno da doçura cristalina do Mundo Mineral. A “colonialidade fofa”, como declara Guerreiro em debate com realizadores durante o festival, é a tônica do filme, que contesta a narrativa mítica oficial da “harmonia e perdão” entre os povos negros, indígenas e os brancos colonizadores.
Exagerada também é a família tradicional mineral, que, como sugere Divino Amor, contém o poder alvejante de controlar todo e qualquer desvio de sua forma cristalizada de vida. A superficção me leva de volta à diversas cenas de minha infância e adolescência, que se deu no interior (ou nas entranhas) do mundo mineral, onde todos os tipos de docilização e tentativas de controle foram impostas ao meu corpo e minha subjetividade rebelde de mulher e lésbica.
A montagem de Guerreiro nos apresenta também cenas de eventos da cultura mineral, e nos oferece um tour por um de seus lócus de poder, a empresa responsável pelo assassinato de milhares de pessoas, Vale do Rio Doce. Nesse momento, o passeio turístico por uma “paisagem” industrial coberta de pó de minério dispensa qualquer montagem ou recurso imagético debochado, por si só a voz over da guia que comenta o entorno já entrega toda a contradição e escancara a política de morte para a qual a empresa está a serviço.
Cenas do crime cometido por essa mesma empresa são enquadradas por Amanda Dias em Mineiros. O Mundo Mineral, sua história e articulações prenunciam e abrem caminho livre para a exploração e devastação, cujo o resultado é capturado pelo olhar de Dias. Em Mineiros o silêncio bucólico das montanhas minerais mencionado pelo filme de Guerreiro, é confrontado pelo silêncio fantasmagórico da paisagem devastada filmada por Dias.
As filmagens do filme de Dias são feitas principalmente a partir de planos fixos, nos território atingidos pelo rompimento de barragens e pela exploração da atividade mineradora da mesma empresa visitada pelo filme de Divino amor, a Vale do Rio Doce - dentre eles Brumadinho, Bento Rodrigues, Macacos, Barão de Cocais, Comunidade do Socorro e Serra do Curral. Amanda Dias nos convoca a encarar os vestígios de um crime ainda sem punição, e transita por paisagens que, se não fosse o desastre que carregam, seriam paisagens extremamente familiares para nós, mineiros, que não fomos atingidos, mas somos vizinhos do caos. As imagens e o vazio ao seu redor são os principais narradores do filme e nos conduzem por um mundo de ruínas e lama, que parece ser a conclusão de um projeto de morte que há muito vem sendo executado.
O plano inicial nos mostra a Serra do Curral, um marco da paisagem da capital mineral, porém visto pelas “costas”, pelo menos desde a nossa perspectivas de moradores da cidade. A montanha devorada se revela quase como um artifício de cenário feito de papelão, sustentado por pequenas varetas, que pode colapsar a qualquer momento.
Em uma conversa com gritos surdos, as paisagens, as ruínas, a água enlameada, lápides, pichações e placas nos dizem o que é preciso ser dito. Cuidado. Perigo. Nosso Grito Precisa ser Ouvido. Uma sequência de placas marcando o caminho de rotas de fuga é apresentado no que minha percepção só consegue conceber como uma looping, que não indicada de fato nenhuma saída.
Após uma longa conversas com as imagens, uma voz irrompe do silêncio e ousa ser ouvida. A presença e a voz de Amarair, morador de uma comunidade em situação de risco de ser atingida por uma barragem, atrevem-se a mostrar que ainda há vida que pulsa, resiste e demanda pela vida naquele lugar.
Ao ouvir sua voz, me transporto para a docuficção Inabitável de Loic Ronsse, que especula um futuro em que o mundo mineral teve êxito em seu projeto de morte e destruição. Nessa produção, imagens do território atingido pelo rompimento das barragens são capturadas por drones, e ficcionadas como uma análise alienígena das condições de habitação do planeta Terra.
No mundo inabitável de Ronsse, não há mais nenhum ser vivo e as únicas criaturas que restam são aparatos industriais, caminhões e tratores que continuam trabalhando em sua gula insaciável pela vida na Terra. Como um respiro, o discurso de Amarair em Mineiros me lembra que ainda estamos aqui, e que talvez ainda tenhamos tempo, não de barrar o fim do mundo, mas sim, de construir outro totalmente novo.
este texto foi produzido como parte da Oficina Corpo Crítico – Experimentações Críticas por um Cinema Implicado, ministrado pela crítica Kênia Freitas, durante o 22º FestCurtasBH.
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