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por Gabriel Nunes da Silva

QUE TEM SAUDADE

Sobre o filme DIZ QUE É VERDADE de Claryssa Almeida e Pedro Estrada


Eu levanto do assento de metal na calçada e faço sinal para o ônibus, o 3302A havia acabado de virar a esquina e vinha em minha direção, tem que prestar atenção, porque só o “Via Hospitais” leva para o meu destino. São cerca de meia hora de trajeto, dependendo do trânsito, é uma viagem rápida. Quando possível, gosto de sentar na janela, olhando a cidade passar. Mesmo já tendo feito aquele caminho inúmeras vezes, sempre me pergunto se já estou na Pedro II ou se aquela ainda era a Carlos Luz. Gosto dessa linha porque ela dá uma volta quando chega no Centro, dá pra olhar o movimento. Faço sinal quando o veículo entra na Augusto de Lima, desço no ponto do Edifício Central Park. Caminho alguns poucos minutos, paralelo ao mercado central, até chegar numa rua estreita, cheia de cadeiras na calçada. Às vezes está lotado, é difícil achar um lugar para sentar, mas a gente sempre dá um jeito, porque ninguém quer ir pra nenhum outro lugar.


O filme “Diz Que É Verdade”, de Claryssa Almeida e Pedro Estrada (2019, 16 min), começa nos mostrando os detalhes do que parece ser um bar: uma parede de azulejos brancos, prateleiras de garrafas de bebida, a porta de metal azul, cadeiras de plástico pretas; enquanto isso, ouvimos sons vindos de duas pessoas, que logo em seguida nos são apresentadas, ele e ela estão aquecendo suas vozes; não era apenas um bar, era um bar com karaokê. Confesso que senti um arrepio passar pelo meu corpo enquanto via essas imagens. Aquele filme se passaria no meu lugar favorito de Belo Horizonte.


O curta de Almeida e Estrada nos convida a passar um dia na vida de duas personagens: um homem negro, quarenta e poucos anos, pintor e uma mulher negra, na casa dos vinte, cabelereira. Ele e ela estavam prestes a “subir no palco” na cena anterior. Somos levados/as para conhecermos seus trabalhos, suas casas e suas famílias. Ambos compartilham de mais um traço em comum: estão sempre cantando, cantarolando, assobiando pelo dia. O ritmo e a música acompanham seus afazeres. Acompanhamos ele e ela se arrumando para, como já sabemos, viajarem até um pequeno bar no coração de Belo Horizonte.


Minas Gerais emana talento. De Maria Carolina de Jesus a Sérgio Pererê, de Conceição Evaristo a Djonga, a lista é interminável. Em Belo Horizonte, a arte está literalmente pintada nas paredes dos prédios. BH é uma cidade que está constantemente sendo colorida, sendo reivindicada. E é uma cidade que te premia com uma mistura de gente tão densa quando o tropeiro da feira hippie. Aquele bar na Rua dos Goitacazes é um exemplo dessa mistura. Você encontra mesas cheias de jovens começando ou terminando o “rolê”, de casais se conhecendo, de senhorinhas e senhorzinhos curtindo sua noite de final de semana. Mas se existe algo capaz de unir todas essas pessoas, essa é o karaokê: seja Britney, Alcione ou Chitãozinho & Xororó, todo mundo canta junto, numa só voz, vibrando desafinadamente a cada verso.


Eu não consigo me lembrar da última vez que um filme me trouxe tanta felicidade como “Diz que é verdade” foi capaz. Em tempos tão angustiantes como os que vivemos, poder sentir o calor do abraço de um espaço tão familiar me fez relembrar todos os momentos genuínos de carinho que senti naquele mesmo bar. Me recordei dos dias que passava cantarolando, cumprindo os meus afazeres do dia, mas imaginando o momento de poder gargalhar tão alto que a mesa do lado iria olhar torto, a cerveja estupidamente gelada, o copo lagoinha, a cadeira de plástico. São as “pequenas alegrias da vida adulta” como diria Emicida, mas são essas pequenas alegrias que fazem os nosso dias reconfortantes.


Minha vida mudou completamente nos últimos dois anos: Eu saí da casa dos meus pais, no interior do Rio de Janeiro, para morar em Belo Horizonte. Minas foi mais que uma descoberta pra mim, foi uma descoberta sobre mim. Agora, de volta a minha terra natal por causa da pandemia, eu sinto uma saudade imensurável das pessoas que me escolheram e da apaixonante cidade em que morava. Eu sou muito feliz pelas forças do universo terem me apresentado um grupo de amigas/os que mudaram a minha vida e que, fizeram tantas lembranças felizes nas mesas daquele mesmo bar, cantando naquele mesmo karaokê, assim como as personagens do filme.


O que fez para mim a experiência de assistir “Diz Que É Verdade” tão especial foi a maneira, tão pessoal e sincera, que Claryssa Almeida e Pedro Estrada recontam a singularidade de uma experiência da vida belo horizontina. Não é como se todo mundo fosse se reconhecer naquela história, mas ela e ele escolherem uma vivência tão específica, e a narraram de uma forma que é tão real quanto surreal, que assistir ao filme, foi viajar quatrocentos quilômetro de volta para Belo Horizonte, enquanto eu cantava junto com aquelas pessoas nas cenas do karaokê. O filme não tem medo de se assumir como uma brincadeira, quase uma piada interna, com a juventude belo horizontina. Quando as personagens cantam e se viram para nós, é como um convite a nos juntarmos a ele e ela e a fazer parte daquela festa e daqueles momentos de alegria compartilhada com amigos e desconhecidos, num bar “copo sujo” na capital mineira.


O cinema pode abrir uma passagem (CESAR & RODRIGUES FILHO, 2017) para outros espaços, para outros tempos. No caso de “Diz Que É Verdade”, você é convidada/o para um pequeno bar no centro de Belo Horizonte, Minas Gerais. A narrativa te arrasta pelo dia de pessoas comuns, com seus trabalhos, suas famílias, suas/seus amigas/os, mas que, em um momento de descontração, escolhem levar a musicalidade que carregam sempre consigo para aquele karaokê e, como já diria o velho ditado, cantar até espantar os males da vida.

 

REFERÊNCIA

CESAR, Amaranta & RODRIGUES FILHO, Fabio. Pode o cinema abrir uma passagem?. In: Catálogo do forumdoc.bh 2017. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2017.

 

este texto foi produzido como parte da Oficina Corpo Crítico – Experimentações Críticas por um Cinema Implicado, ministrado pela crítica Kênia Freitas, durante o 22º FestCurtasBH.


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