Apiyemiyeki?, o título do curta-metragem experimental e documental de Ana Vaz, faz referência a uma pergunta feita pelos Waimiri-Atroari, durante o processo de alfabetização da aldeia: “Por que kamña [civilizado] matou kiña [Waimiri-Atroari]? Apiemieke?”. Através da escolha do título em kiña e não em português, a princípio, sugere-se um deslocamento do olhar entorno do episódio de genocídio foi reconhecido pela Comissão Nacional da Verdade em 2014, que será reconstituído ao longo do filme.
Esse deslocamento se dá nas suas primeiras imagens, por meio da construção de um regime de opacidade. A câmera balança na mão da cinegrafista e passeia pelo complexo do Palácio do Planalto, no Distrito Federal. Decompõe-se os corpos dos monumentos do cartão postal, símbolos de justiça e progresso. A câmera parece interrogar, em silêncio, as faces sem rosto e corpos de pedra, investigando suas curvas e linhas. A cinegrafista também filma o chão e as sombras projetadas nele, enquanto caminha pelo cenário como se procurasse por pistas.
É possível localizar o registro do filme no presente, quando embarcamos na BR-174 e nos deparamos com outros veículos de modelos contemporâneos que também atravessam a via. Nesse sentido, a escolha pelo preto e branco cria uma sensação de passado presentificado e nos remete a atemporalidade da violência vivenciada por populações originárias sob tutela do Governo Federal. Sensação reiterada pela fala em voz-over:“É como se a ditadura não tivesse fim para esses povos e eles continuassem recebendo toda essa violência”.
Aqui, no entanto, há também uma ruptura com o regime de opacidade construído através do silêncios e da instabilidade das imagens filmadas com a câmera na mão, assim como o deslocamento de tempo entre a realização do filme e sua narrativa. A fala que ouvimos ao telefone, parece reestabilizar o filme, situando-o numa determinada temporalidade a qual atribui a origem da violência vivenciada pelas populações indígenas: a ditadura militar. Além disso, ao se referir a elas em terceira pessoa (esses povos), indica um ponto de vista diferente daquele sugerido pelo título, que se evidencia, quando somos apresentados ao educador Egydio Schwade.
O educador recebe a diretora em sua casa, se apresenta e, também, os desenhos realizados por Waimiri-Atroari, nos anos 80, durante o processo de alfabetização ministrado por ele. A partir deles, Ana Vaz ensaia uma narrativa visual e sensorial em torno do evento, criando sobreposições entre essa imagens, intercaladas com fotografias de Egydio e a filmagem do rio nas proximidades da casa do educador. Adjacente as ilustrações, há palavras em kiña escritas no alfabeto romano, no entanto, não é estritamente necessário conhecer o idioma para abstrair significados transmitidos pelas imagens: ligadas a violência deixada pela construção da estrada federal, durante a Ditadura Militar.
O relato do entrevistado, no entanto, continua em voz-over. Chama a atenção um dos momentos em que ele fala sobre o método de alfabetização freiriano que dá soberania ao povo alfabetizado. “Pelo menos”, ele mesmo corrige, “uma reciprocidade”. Fico me questionando se seria realmente possível uma reciprocidade na medida em que o próprio processo de alfabetização reflete uma relação colonial.
Esse questionamento acaba refletindo sobre o próprio filme e motivando a escrita desse texto. Embora Ana Vaz busque, por meio da montagem, construir essa reciprocidade entre os relatos contidos nos desenhos e na fala do educador, a voz-over de Egydio se sobrepõe aos desenhos que, por sua vez, apesar de sua autonomia narrativa, passam apenas a ilustrar o discurso do primeiro.
A água da correnteza diluí as imagens e a montagem nos traz de volta a Brasília, situada no presente. A câmera gira criando um efeito de vertigem diante da capital brasileira que é, hoje, cenário da omissão do Governo Federal diante do alastramento do COVID nas aldeias e a mais recente tentativa de apagamento da história por meio da PL do Marco Temporal. Ao fim, persiste apenas a sensação de irresolução e incongruência quando o filme se encerra com a mesma pergunta que o intitula. Entendemos o por que da sua realização, mas a história continua a se repetir, como se não soubéssemos as respostas.
este texto foi produzido como parte da Oficina Corpo Crítico – Experimentações Críticas por um Cinema Implicado, ministrado pela crítica Kênia Freitas, durante o 22º FestCurtasBH.
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