Ao final da sessão - que para mim parecia dividida em dois momentos, talvez pela “comodidade” que o online permite - comecei a pensar em como (e se) esses quatro filmes desobedecem o fluxo da automação. Antes de sondar respostas, cabe uma digressão: nesses anos intermináveis marcados pela pandemia global de Covid-19 as experiências de automação, e automatizadas, tornaram-se ainda mais nuas: muitas das relações de trabalho que estabeleciam como fundamento o confinamento do corpo do operário num espaço comum de vigilância e controle (fábrica, escritório, loja) foram substituídas por experiências de controle e vigilância à distância. A casa, lugar de descanso e intimidade, tornou-se base de confinamento.
Nesse sentido, o filme Lata, retrata o cotidiano de uma jovem empregada doméstica que está o tempo todo marcando e sendo marcada pelas diferenças culturais que existem entre ela e os patrões: na língua, na forma de comer e vestir, na discrição que deve assumir quando divide o mesmo espaço que eles. O sistema de castas indiano está ali, vivo e atuante. O ritmo do filme segue a docilidade da protagonista diante dos fatos, até a sequência final, que parece finalmente nos apresentar a ela: na dança, na alegria compartilhada e no corte abrupto que, mais uma vez, interdita a expressão genuína daquela existência.
Em Depois do Dilúvio vemos uma Rússia que parece ter enviado Yuri Gagárin para o espaço há pouco tempo. Parábola incompleta de leite sem mel, faz das vacas a única companhia dos animais atrelados àquela arca. Numa vivência fora do tempo neoliberal, apesar das máquinas de ordenha, as vacas assumem essa perspectiva dos corpos deslocados, do objeto de maus tratos e da exploração sem respeito algum. Nenhuma delas sorri. Algumas impõe resistência e usam sua força para marcar posição e atrapalhar o serviço dos trabalhadores automatizados e exaustos que tampouco sorriem de volta.
A terra encharcada atua como coadjuvante na tarefa de adensar a dificuldade. Como nenhum deus parece se interessar por aquele lugar, a arca se transforma em limbo e nos deixa curioses sobre qual evento fará a roda do tempo girar diferente.
Seguimos do charco russo para uma rua movimentada em uma cidade da Índia onde um grupo de homens se ocupa de cortar e derrubar uma árvore enorme. Entre conversas que não são traduzidas e cigarros compartilhados, acompanhamos os diversos aspectos que compõem a existência daquela centenária árvore: um pequeno altar cercado por grades a seu pé abriga imagens devocionais; de um buraco em seu casco avistamos um bicho pequeno, de olhar apreensivo, que precisará se mudar; quando seu corpo vai sendo retalhado e do tronco maciço surgem gravetos, são muitas as pessoas que se aproximam para coletá-los. Altar, morada, abrigo e fogueira são algumas de suas muitas faces.
Apesar da natureza incomum do evento, ele pouco modifica o fluxo daquela rua enquanto os pedaços dos troncos mais altos se espatifam no chão: o ritmo de passagem da rua movimentada, como num rio caudaloso, toma apenas pequenos desvios. O que chama atenção em A Figueira Sagrada é a naturalidade na lida com o tempo do evento, o respeito com cada aspecto e etapa concluída, algo que engloba o todo, mobiliza a todes e parece manter balanceado um equilíbrio de aparência caótica que paira no ar.
Encerrando o programa, talvez a ponta mais formal de um conjunto de filmes sobre atividades laborais, 60 Horas nos envolve no ritmo de vida e trabalho de um casal que nunca se encontra. Digo nos envolve, pois, num filme de três atos em que a repetição nos conforta e a mínima perturbação é notada, rapidamente nos adaptamos a rotina apresentada. Os pactos selados pelos gestos repetidos, a hora para o bocejo viral, o aceno ou o cigarro, tudo é cronometrado e marcado pelo tempo dos relógios, principais janelas de fuga e prisão dos operários de chão de fábrica. Nosso corpo, treinado, escorre pelo filme: as tarefas, a refeição quente demais para a necessidade de algum sabor, o flerte que mantém os olhos atentos mesmo diante da tarefa exaustiva.
Os signos movimentados pela história são tão universais que explicações ou texto são dispensados. Ainda assim, o filme deixa algumas pistas de leitura a serem seguidas: quando o homem chega em casa e reconhecemos na sequência a semelhança com um filme de Marta Mészáros para logo depois um ônibus revelar a palavra Budapeste. Quando o ritmo das repetições é interrompido e o operário resolve romper o fluxo que o aprisiona, podemos entrever a dúvida, o vacilo: para onde vai o ônibus que devo tomar?
Em conjunto, os filmes do programa Desobedecer o Fluxo da Automação se inscrevem numa gramática universal de experiências do tempo medidas pelo trabalho sem, no entanto, desobedecê-la tanto assim. Nessa apreensão do comum o que sobressai é a extensão da produção do corpo maquínico a seres mais-que-humanos e relatos que parecem reminiscências de tempos históricos distantes. Da experiência de assisti-los o que excede é a acomodação, a apatia e o desconforto de perceber que talvez a transformação humana em máquinas de repetição esteja completa. Como no filme russo, talvez estejamos presos numa espécie de limbo neocapitalista à espera de que nos digam o que seremos a seguir. Ficaria a cargo de nós, espectadores, a responsabilidade e necessidade de desobedecer o fluxo da automação?
este texto foi produzido como parte da oficina Corpo Crítico – Entre Políticas da Amizade e Ensaios da Traição, ministrada por Ingá e Fabio Rodrigues Filho, durante o 23º FestCurtasBH.
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