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por Gabriel Araújo

Um pacto para falar (e ouvir) sobre a violência


Uma criança estava sentada do lado de fora do Banco Itaú hoje, em pleno centro de Belo Horizonte. Carregava uma caixa de balas de hortelã na mão, encarava os olhos de todos que entravam ou saíam dos caixas e tentava sua venda. “Compra uma balinha pra me ajudar, moço”. “Compra uma balinha pra me ajudar, dona”. Mantra repetido a cada novo rosto do recinto. Não preciso dizer que sua pele era negra. Nem contar que foram poucos os que efetivamente pararam em seu auxílio.


Permito-me trazer esse breve nariz de cera para compartilhar que, durante o longo e potente monólogo em que Rafael dos Santos conta não a sua história, mas a sua desgraça, foi a voz da criança que ouvi. Repercutida no timbre de Fael e no de tantos outros homens condenados a uma violência sistêmica perpetuada pela opressão cotidiana de um Brasil que não dá trégua.


É para a escuridão que o protagonista caminha logo no início de Sete anos em maio, média-metragem dirigido por Affonso Uchoa. A noite, adornada pelo apático e sombrio amarelo dos postes de luz, figura como uma das constâncias do filme, contribuindo para a construção de um clima que te imerge na narrativa. Uma estética impecável é ali construída, propondo concretizar uma força centrípeta que enfoca os personagens e seus relatos. É necessário um pacto: ou você está ali, ou não está. E o modo como nos colocamos frente ao conto de Rafael acaba por definir o modo como seremos interpelados pelo média.


Pois tudo está ali, naquele enquadramento rígido, fechado, que enfoca tanto os olhos marejados do homem que nunca chora quanto a potência de seu testemunho, capturado na íntegra num único plano sequência. Memória e narrativa se misturam naquele longuíssimo plano, embaralhando mais uma vez – afinal, estamos falando do mesmo diretor de A Vizinhança do Tigre (2014) – os limites entre realidade e ficção. Tudo é muito real para ser encenado. Ao passo que tudo está muito bem construído para ser apenas registro. Assim o filme entrega não só a forte denúncia de perseguição e tortura, como permite a elaboração conjunta do trauma, simplesmente, por parar, sentar e escutar. Exercício de escuta e alteridade. Processo que parte da identificação primeira para enfim culminar numa revolta.


Contudo, se tal testemunho basta, qual a razão de reencenar o trauma no real local de ocorrência? Qual discurso Uchoa deseja imprimir quando faz com que jovens fantasiem-se de policiais e ajam para representar a tortura a que Fael e tantos outros foram submetidos? Compreendo que, em alguns casos, situações violentas pedem por representações também violentas, mas admito a minha dificuldade em lidar com as imagens que abrem o filme, por não compreender a que ou a quem elas servem.


Uma possibilidade de interpretação surge no terceiro ato do filme, após a quebra da possibilidade de um espectador confidente e a revelação de um novo interlocutor em cena. É nesse momento que o diretor age, incidindo sobre a realidade e abrindo margem para um teatro engajado. Seja com Neguinho, que já apresenta na fala o contar truncado do roteiro; seja na brincadeira que encerra o média, alegoria real de um jogo genocida que mata jovens cotidianamente nas periferias desse território. Momentos unidos pela ironia de um discurso que pretendia ser resistente, revolucionário, mas que esbarra na dureza de um cotidiano assassino. Afinal, o “seguir adiante” proposto por Neguinho é logo desmentido pelo plano fechado dos passos dos jovens que caminham à própria sorte.

Resta o homem que permanece de pé. E a criança que, sentada na porta do Itaú, luta pra sobreviver. “Compra uma balinha pra me ajudar, moço?”.

 

este texto foi produzido como parte da Oficina Corpo Crítico – Cinema em Perspectiva: Reconfigurações do Fazer Crítico, ministrado pela crítica Kênia Freitas, durante o 21º FestCurtasBH.

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