MOSTRA PARALELA
• CINEMAS FRACTAIS •
O olho sob a lente é um espelho que sonha
Bruno Galindo e Érico Oliveira
O gesto de composição desta mostra aponta para dois caminhos principais trazidos a reboque por duas perguntas: o que e como são (pensados, feitos, recebidos e estruturados) os chamados “filmes de festival”? Pergunta essa que talvez proponha discussões um pouco mais públicas e circuladas dentro de uma certa comunidade de pensamento sobre cinema.
A importância da primeira pergunta surge, na verdade, na elaboração da segunda: como pode um festival e uma equipe curatorial alastrar seus alcances de circulação das ideias sobre cinema para as bordas de um sistema de produção de imagens que talvez tenha ultrapassado o próximo cinema em seu tempo?
Isso porque cinema é uma forma produtiva também do tempo e da época. A forma dominante do cinema surge, sim, de premissas estéticas e formais, mas que são insuficientes como pensamento analítico quando entende-se que meios de produção e modos de produção são forças determinantes nesse mesmo circuito criativo.
Olhamos então para uma mostra que, em medidas semelhantes, revela um desejo de elevar uma discussão prévia que circula as nossas conversas e, ao mesmo tempo, aponta para desdobramentos que surgiram a partir e através dos filmes, do contato com filmes, da relação das pessoas escolhidas para a curadoria. Esse regime de certezas circunstanciais e estratégias intuitivas forma uma mostra que não quer ser discurso para oficializar uma verdade sobre o estado do cinema, mas usar o gesto como forma de extrapolar a compreensão do que acontece agora, diante dos nossos olhos, de montar e ruir com as próprias definições dessas imagens.
Olhamos para uma mostra movida pelo processo duplo de posição das imagens produzidas na grande era das imagens, no século em que, ao menos, os meios de produção da imagem se distribuíram no tecido de realização, que muito bebe do cinema, mas que talvez do cinema também tenha ressaca e busque outra coisa. Ou também filmes que, no movimento inverso, buscam imagens fora do sistema de representações tradicionais para formular suas próprias compreensões sobre cinema e imagens de cinema. Mais do que apontar para o que é ou não é cinema, então, talvez o gesto provocador desta mostra seja o de sugerir a possibilidade de existência do cinema como uma forma fluida de manipulação, uma lógica de atravessamento dos espelhos, tomando, como possibilidade de transformação das ideias, o fato de que cinema seja necessariamente uma redução controlada de uma relação mais ampla (e, muitas vezes, mais incompleta) com as imagens de filme, com as filmagens e com o cinema como modelo estético e produtivo que filia a si desejos de relação e fruição com o mundo lá fora, com a superação dos limites do reflexo de espelhos como forma de elaboração dos feitiços fílmicos que, é importante dizer, não são apenas compreensões da forma e da estética como traços autossuficientes e isolados, uma vez que muito do que se vê aqui são filmes dispostos ao desafio de mergulhar na realidade factual, atravessar o espelho e, do outro lado, sair carregando algo de um cinema fractal. Cinema fractual, talvez.
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Que esses filmes abram no cinema um espaço do imprevisível, eis uma força que talvez mereça aqui nossa atenção – permitida justamente por esse olhar mais experimental contido no arranjo que arriscamos. É como se houvesse certo tipo de improviso, a cada gesto de escritura, operado pelos curtas, cada um à sua maneira. Quando im-pro-viso, eu nego a capacidade de pre-ver. A visão é uma aventura na qual se embarca. Entre curtas mais controlados nos seus arranjos e outros que evidenciam a própria deriva, o que parece ser submetido ao improviso é, constantemente, algum tipo de material que ali se tomou como que por contrabando, para abrir a negação da previsão.
Por essas vias singulares, cada curta retraça uma espécie de história do olho, tramada desde suas envergaduras epistêmicas (há um tanto de problemas para o saber a cada problema lançado por uma imagem, como por um novo animal descoberto por uma imagem) até suas poderosas camadas de desejo – uma história do olho é uma operação da transgressão, bem sabemos. Entre os olhos desencarnados das imagens de vigilâncias e os olhos que querem tocar, a lição de Tomé já se transmutou: se, além de ver, ele precisava tocar, talvez, a essa altura, estejamos alguns pés adiante – as imagens nos fazem querer também lamber.
Pela costura desses filmes que improvisam, cada imprevisto diante do visto se torna, aqui e ali, operação de palavra; aqui e ali, traço de disjunção; aqui e ali, ralentado que evidencia cúmplices de crimes; aqui e ali, palavra mesma – letra – que se manuseia com estatuto de visto-imprevisto. Com variedade de recursos, aprendemos um tanto sobre a participação de imagens em tramas históricas, sociotécnicas, filosóficas, subjetivas e de grupos. Seja diante do luto familiar, seja em face a tragédias de um país, o ato de vasculhar a imagem permite a emergência de elos necessários entre ver, rever e elaborar. Se um drone estabelece um jogo de responsabilidade entre quem o opera e os assassinatos de uma guerra, um outro laço, de vitalidade, também é possível pela mediação do visual, como que por contraponto: atravessar os processos de luto, para insistir numa imagem que possa inaugurar compreensões lacunares do passado e promessas de presente.
Entre a distância e a proximidade, entre o contato e o mais longe possível, as histórias dos olhos se transformam no próprio aqui e agora dos usos e reúsos do visível. Máquinas acopladas com a guerra ou aparelhos que se aliam a reparações históricas e convocam redistribuições das cidades: os múltiplos aparatos de fazer ver são enredados em manuseios – com as mãos, os olhos vibram diante do que ainda não foi (re)visto. A cada mão que abre o brinquedo óptico, um olho pode nele delirar, improvisar, para imaginar o imprevisto.
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O discurso curatorial que se estabelece aqui, portanto, atravessando a seleção de filmes nacionais e internacionais como processo de filiação e ruptura entre os filmes que movimenta lugares muito mais do que cria um horizonte convicto, não é apenas uma narrativa curatorial imposta, mas uma experiência sobre seus próprios estados e limites, uma transferência, para a esfera pública do festival, de conversas que surgiram nos processos de construção do próprio festival.
Perguntas, acima de tudo, percorreram as elucidações sobre o que a nós, enquanto corpo curatorial, parecia e parece ainda se desdobrar para além da experiência de contato, seleção e programação dos filmes, como forma de pensar o próprio sentido de organização dessas relações que se revelam também na forma dos filmes, como exercício constante de tensionar os regimes produzidos pelos próprios olhares escolhidos para formar uma curadoria, nessa insuficiência infinita que não sinaliza esgotamento, pelo contrário, garante um circuito perene de ideias e de olhares que, essencialmente, convocam a esfera pública para uma partilha desinteressada das táticas de autoridade. Isso também porque os filmes que compõem esta mostra se inventam a partir da própria desconfiança sobre um jeito definitivo de fazer cinema, propondo a ideia de que a lente pode até ser um espelho, mas sabendo que a lente é um espelho partido e, por isso, revela muito mais versões do mundo do que um espelho intacto e íntegro. Sabendo, afinal, que os olhos sob as lentes são como espelhos que sonham.