Em “BR3”, de Bruno Ribeiro
A experiência cinematográfica LGBT+ está mudando e sei disso porque estou em uma sala de cinema e quando olho para os lados vejo todos estes rostos que me dizem: estamos todos na mesma caminhada. Talvez porque dentre os filmes selecionados muitos tratam de questões LGBT+, talvez porque temos, de fato, mais espaço para existir. Sei disso, e também sei que essa sala no centro de Belo Horizonte está longe demais da periferia, das margens, do acesso. Então, reitero: a experiência cinematográfica está mudando, mas ainda dentro de uma esfera mínima, compacta e privilegiada.
O filme “BR3”, do diretor Bruno Ribeiro, mesmo responsável pelo curta-metragem "Pele Suja Minha Carne", é um desses filmes performáticos ao extremo. E é dessa forma que se põe em ação uma série de efeitos de mudança. Kastellany, uma mulher transsexual, chega em uma casa e é recebida por outra mulher. A primeira parte (dentre os três atos do filme) já nos exalta o poder da performance. E é isto que vemos no filme quando Kastellany é contestada – quase em um quiz de “quem é você na sobrevivência diária da luta travesti” – por essa mulher transsexual mais velha, vivida, experiente. É aos passos negros, na artpop, que ela se enlaça em um segundo protesto: a força da dança e da performance como estratégia de poder e sobrevivência, como afirmação de que “não pretende se acostumar”.
Por que um filme diário e simples torna-se político? E de que forma estes corpos ocupam o cinema?
Não creio que seja uma questão de Carnaval e cerveja. A gente não se exalta performaticamente (e aqui não digo só da dança, do bate cabelo, etc, também digo da poética, do modo de se mover, existir, participar) porque temos em nós o dom da graça, da arte marginalizada, do suor gay que gastamos para a família gargalhar na novela das 9. Porque as da 7 são cedo demais para mostrar “putaria”. A gente se exalta porque a gente transborda vontade de viver. O corpo LGBT+ é performático porque precisa disso para sobreviver. Precisa de um certo amor que engrandece si mesmo, precisa de empoderamento diário, segundo por segundo.
Agora, prestem atenção nessa cena.
Duas mãos que se encontram em uma dança. Que são livres. Que são felizes consigo, com seus corpos, com seus amores. Duas mãos em um plano fechado que não julga ninguém, que está longe dos olhos dos que apontam os dedos, dos que gritam, xingam, matam. Duas pessoas transsexuais, que, em um momento, se amam vigorosamente. Duas mãos que performam, que se libertam. E o que se segue depois é a confirmação de que o que almejamos é a liberdade e todas as possibilidades que o mundo tem a nos oferecer, sem medo e sem tragédias. Quando se abre a janela daquele quarto e vislumbramos, calmamente, um dia como outro qualquer, sabemos: o desejo de existir mora ali. Como canta Nina Simone, muito bem colocada, “eu gostaria de saber como é a sensação de ser livre”.
A experiência cinematográfica LGBT+ está mudando e é porque conseguimos sentir um pouquinho do sentimento que há na tela. E não tô falando dos desastres, da trans que usa crack, da sapatão que acabou casando com o doador de sêmen (é disso que tão falando no Twitter?), da poc novinha que se apaixonou pela gay 30 anos mais velha. Tô dizendo dos momentos simples: do sexo gostoso, apaixonado. Do papo animado com xs amigxs. Do canal no Youtube pra falar besteira, dos gostos e desgostos. Da vivência diária do que é ocupar um desses corpos políticos, para além da tragédia.
Essas três histórias, que colocam no centro das atenções corpos transsexuais, – e explicito isso aqui porque é importante, porque é político – mostram um desenrolar da busca por algo que todos queremos: felicidade e amor. Porque pode ser que a vida seja miserável, mas pode ser que um dia não seja tanto. O filme de Bruno nos diz da resistência, nos diz desses corpos que seguem em frente, que sobem em suas motos e vão. Seguem para a próxima, não desistem.
Texto crítico escrito por Yasmin Guimarães, integrante da 1ª oficina de crítica cinematográfica, Corpo Crítico, intitulada "Por Um Deslocamento do Olhar", ministrada pela crítica e pesquisadora Carol Almeida, durante o 20ºFestCurtasBH - Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte.
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