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por Manu Zilveti

Mãtãnãg, a encantada

Na tragédia grega o grande amor de Orfeu e Eurídice é interrompido pela morte repentina da ninfa após ser mordida por uma cobra. Orfeu em sua dor de ter perdido sua amada desce ao mundo dos mortos. Lá ele suplica que Hades lhe permita levá-la de volta para o mundo dos vivos. O deus concede seu desejo com a condição de Orfeu jamais olhar para trás no caminho de volta à Terra, mas em um descuido, o mortal descumpre sua promessa e ao virar seu pescoço para vislumbrar Eurídice, ele a perde para sempre.


Em Matãnãg, a Encantada (Shawara Maxakali, Charles Bicalho, 2019) o conto tradicional do povo Maxakali narra a história da jovem Mãtãnãg em sua jornada de seguir seu marido recém morto por uma picada de cobra para o mundo dos espíritos. A narrativa oral transportada para a linguagem fílmica corporifica em tela seus elementos em desenhos e colagens. A representação da constituição física dos personagens tinge de vermelho-sangue a pele dos vivos e esvazia a dos mortos que, destituídos de sua carne, são apenas traços ocos preenchidos pelo cenário que habitam. Dentro dessas representações é possível enxergar um movimento de conceber um imaginário coletivo tangível destas narrativas orais. A corporeidade dos personagens se dissolve e se reorganiza dentro dos planos em imagens recortadas que se sobrepõem e se deslocam, pulsando em um movimento de imersão para dentro dos olhos de quem as assiste. Se as imagens entram no espectador, o som termina por absorvê-lo, cercando constantemente o ambiente sonoro com o canto dos Maxakali.


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No centro do filme está Mãtãnãg, ferida com a morte de seu companheiro e disposta a segui-lo para o mundo dos espíritos, mesmo que ele diga para ela não o fazer. Há em Mãtãnãg o gesto de enfrentar e de sofrer. Em seu caminho fogo, morcegos e frutas caem sobre seu corpo. Aquilo que a fere pertence aos espíritos Yãmîy. “Deixe isso, são de Yãmîy”, lhe diz seu companheiro, orientando-a para não se defender dos ataques, ainda assim Mãtãnãg pega o machado para cortar a árvore que lhe atira frutos na cabeça, água para apagar o fogo que lhe queima e um pau para bater nos bichos que a mordem. Tudo em vão, ela precisa viver essas dores para atravessar para o outro lado. Dores estas que não são partilhadas por seu marido espírito. Aquilo que é dos Yãmîy não pode machucar seu corpo vazio.


Mas ao chegar ao outro lado, animais grandes cheiram Mãtãnãg com desconfiança, talvez farejem seu sangue. Quando ela sai para pescar, consegue poucos peixes. Sua jornada foi árdua e a chegada é em um lugar em que ela está deslocada. No mundo dos espíritos, Mãtãnãg não tem cor e os raios que saem de suas axilas são débeis, lá não há plenitude em sua vida, ela quer voltar para sua casa, mas é avisada por seu marido que não deve revelar o que presenciara e fizera no mundo dos espíritos.


Mãtãnãg inevitavelmente segue seu esposo. Mesmo quando não consegue mais permanecer no mundo dos espíritos e retorna a sua aldeia, ela quebra sua promessa e conta o que aconteceu no outro lado. Vida e morte transcedem o elo que há entre eles, nem a dor nem a ausência podem separá-los. No momento de sua morte ela escolhe não enterrá-lo, mas comer sua carne.


O erro/esquecimento de Orfeu o afasta de Eurídice para sempre. Ele no mundo dos vivos, ela no mundo dos mortos. Mas a quebra da promessa de Mãtãnãg acarreta em outra consequência. Seu marido espírito que a vigia de dentro de seus cabelos se transforma em cobra e morde seu pé, matando-a. Ela então se torna espírito e eles novamente estão juntos. O espelhamento cíclico da narrativa culmina no momento que o pajé anuncia: ela já está morta. Mãtãnãg está sujeita ao inevitável. Seu desejo de estar junto de seu marido se concretiza com sua morte. Nada mais pode atingi-la, agora ela também é Yãmîy e pode se esconder no cabelo dos vivos.


Se na mitologia grega a morte é a penalidade de desobedecer os deuses, na cosmovisão Maxakali não há culpa nos erros, ou castigos como consequências de quebrar/esquecer promessas. O conto elabora uma narrativa de um povo que concebe a morte como percurso para tornar-se imortal.

 

este texto foi produzido como parte da Oficina Corpo Crítico – Experimentações Críticas por um Cinema Implicado, ministrado pela crítica Kênia Freitas, durante o 22º FestCurtasBH.


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