sobre Mat e As Gravitantes, de Pauline Penichout
Quando li a sinopse do filme sobre garotas em uma oficina de auto ginecologia pensei que de alguma forma eu estaria para além disso. Que por algum motivo meus 24 anos de amor e ódio com o corpo feminino, o feminino e o feminismo já teriam me feito pensar, sentir ou refletir sobre o que quer que viesse ali, sugerido naquela cena de abertura que mostra duas garotas francesas numa banheira.
Pois talvez foi esse mesmo ar de superioridade - sobre os franceses? - sobre aquelas jovens que me fizesse iniciar o filme com um olhar aberto e afetuoso. Talvez por não me sentir ameaçada por algum feminismo impositivo com o qual eu poderia ou não concordar - e me fazer questionar pela milionésima vez se eu teria ultrapassado o pensamento do feminismo clássico beauviriano ou se eu só estaria negando as dores de se perceber mulher e jogando o jogo do patriarcado ao afirmar que eu sou melhor do que aquilo - eu tenha abraçado aquela roda de jovens mulheres como se fossem minhas amigas.
Pois, graças à intimidade trazida pela câmera na mão, que se coloca ao lado das participantes da oficina, posso me sentir, em vários momentos, como uma das garotas na sala. E eventualmente percebo que o que é novo para elas é também para mim. Que não estou além de investigações biológicas uterinas, que não estou além de ver um útero pulsar e expelir sangue. Pela primeira vez. Eu que ontem mesmo vi um satélite vagar pelo espaço a caminho de marte, nunca havia visto o funcionamento de um órgão capaz de dar a vida aqui na Terra.
Percebo de novo e de novo ao longo do filme que existe muito de novo ainda em ser mulher. A ser sentido, vivido, experimentado. E a partir disso percebo o quanto nos foi tirado por séculos de repressão de um uma cultura patriarcal sobre nossos corpos e sexualidade. A palavra autoconhecimento não dá conta. Que mesmo se tratando de um feminino cis, branco, europeu, - e pior, francês! (risos) -, há algo ali que por mais que eu queira dizer que não me alcança... Eu, na verdade, ainda não alcancei.
Assisto a jovem em um depoimento íntimo sobre a própria sexualidade, e ela diz algo que à mim normalmente soaria chocante: “eu descobri algo esse verão, eu descobri o consentimento”. Mas ao invés de julgá-la por um possível atraso em se reconhecer algo tão essencial em uma relação, eu me vejo nela, por navegar em um campo desconhecido cujos saberes nos foram negados por tanto tempo. Pois estou eu mesma nesse momento descobrindo coisas novas. Sobre meu corpo, minha sexualidade, e sobre ser mulher no mundo.
Talvez possamos forçar uma metáfora entre o autoconhecimento feminino precisar necessariamente passar por uma busca interior, carnal, vaginal. Literalmente de volta às origens. Ao útero. É triste como tanto desse texto parece ter saído de um convite para um círculo do sagrado feminino. Feminino, este, que, como podemos ver ao ouvir as garotas conversarem, trocarem experiências e - por que não? - discordarem, mostra-se múltiplo, complexo, amedrontador e belo.
Pois por mais que se problematize a tal fluidez de gênero - e aqui entro com ciência em um campo polêmico - há de se reconhecer que existe algo de imperativo no corpo feminino cis. E no se perceber mulher através de, graças à e apesar desse corpo. E é interessante ver como, apesar de diferentes, desconhecidas, aquelas jovens mulheres se uniram por se reconhecerem como desconhecedoras do próprio corpo, aquele corpo que compartilham.
Mas agora, ao fim do deslumbramento - e do texto - resta apenas a sensação do ainda. Daquilo que ainda nos resta saber, sentir, conhecer, sobre nós mesmas. Do caminho que resta a ser percorrido para que sejamos, enfim, mais donas de nós. Soltas no espaço, gravitando em torno de um feminino indefinível, nos agarramos umas às outras.
este texto foi produzido como parte da Oficina Corpo Crítico – Experimentações Críticas por um Cinema Implicado, ministrado pela crítica Kênia Freitas, durante o 22º FestCurtasBH.
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