“Eu sou Semente da Terra. Qualquer pessoa pode
ser. Um dia acho que seremos muitos. E acho que
teremos que espalhar nossas sementes cada vez
mais longe desse lugar moribumdo.” (A Parábola do Semeador, Octávia Butler)
Rostos negros coroados com obras de arte encaram a tela e nos conduzem entre cores harmoniosas e uma trilha sonora que parece anunciar com tranquilidade a chegada de algo belo e grandioso. Elas, então, sorriem em um gesto de afirmação, cumplicidade e intimidade consigo mesmos, com seus pares, com sua história e também com o cinema.
O documentário Enraizadas (2019) de Gabriele Roza e Juliana Nascimento e as tranças afro - seu tema principal - falam ambos sobre a celebração da beleza. Porém o filme, também como o penteado, nos mostra o emaranhado de significados, a complexidade histórica, ancestral, estética e política do que os olhares menos atentos poderiam classificar apenas como moda ou tendência. “Cabelo crespo não é moda, é identidade!”, é um manifesto/grito de guerra que vimos se tornar uma importante expressão da militância e luta de jovens negras nos últimos anos, que encontraram no processo de transição capilar, de afirmação de seus cabelos crespos, das tranças e dos turbantes os caminhos para o reconhecimento de sua história e fortalecimento de sua identidade. Enraizadas ecoa esse grito mostrando a complexidade e importância da estética na história das mulheres negras.
Mais do que registrar histórias e desfazer os nós de um passado que tentou de todas as maneiras minar suas raízes, o documentário as semeia e faz florescer a sabedoria ancestral no agora. E através das mãos de mulheres negras (trancistas, cineastas) faz com que essa sabedoria se instaure no presente. Gesto que é reiterado também através da fotografia e a direção de arte que parecem estar em consonância com a ciência das tranças e serem pensadas matematicamente para representar essa potência estética em todos os quadros do filme.
Aos mãos das mulheres negras - que filmam, trançam e assim promovem a cura, a beleza e cultivam raízes fortes - nos conduzem por histórias, experiências, traços e caminhos que se cruzam e interpelam criando elas mesmas rotas de fuga para outro mundo que a imagem faz existir. São também essas mãos que criam memórias, fundam arquivos, e como dito no documentário, se implicam na construção de outra política da imagem.
Em um plano do filme vemos duas mulheres sentadas numa escada, a que está no degrau abaixo tem seu cabelo trançado pela companheira, enquanto uma voz off narra um dos muitos significados históricos que são atribuídos às tranças afro. Além da proposição estética, no tempo passado as tranças em zigue-zague teriam sido usadas como desenhos de mapas que conteriam rotas de fuga para quilombos e lugares seguros, longe dos horrores coloniais. Elas também teriam sido usadas como repositórios para sementes que poderiam no futuro ser plantadas e servir como alimento nas terras desconhecidas para o qual procuravam escapar. O corpo-semente que trança, que filma, que conta histórias, que faz ciência ancestral desembaraça o passado, se inscreve no presente e permite que exista terra fértil para que as sementes floresçam no futuro.
Em A Parábola do Semeador, romance afrofuturista de Octavia Butler, a heroína é Lauren Olamina, uma jovem negra que vive num mundo distópico prestes a colapsar. Como um primeiro gesto para adiar o fim de seu mundo e garantir a existência de um futuro, Olamina guarda, aprende a cuidar e manejar diversos tipo de sementes para que possa plantar em uma terra nova. Semente da Terra também é nome de uma espécie de religião que a personagem cria para guiá-la a um futuro diferente daquilo que experiencia. Segundo a protagonista, além de ser garantia de vida, a semente se espalha, viaja, através do vento, dos bichos, da água, voa longe de sua “planta-mãe” guardando ainda sua essência. Se desloca no espaço para crescer e florescer. E para que existam as raízes, é preciso primeiro que sobrevivam as sementes.
Na ficção de Butler e em Enraizadas é o corpo das mulheres negras que guarda com cuidado as sementes, é ele que vai garantir a possibilidade de futuro em outro mundo. Nesse sentido, o corpo-semente apresentado por Roza e Nascimento, que trança, que registra e conta histórias, que faz ciência ancestral, desembaraça o passado, se inscreve no presente e junto com cinema, permite que exista terra fértil para que as sementes floresçam um futuro de possibilidades novas, ancestrais, infinitas.
este texto foi produzido como parte da Oficina Corpo Crítico – Experimentações Críticas por um Cinema Implicado, ministrado pela crítica Kênia Freitas, durante o 22º FestCurtasBH.
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