Seremos Ouvidas, o título do filme de Larissa Nepomuceno (2020), transita entre a demanda e a profecia. Dessa maneira, a forma como a diretora se apropria do cinema para nos apresentar a experiência de mulheres feministas surdas, parece fazer com que essa demanda/profecia do título se concretize no filme.
Como alguém que se entende há alguns anos como feminista, próxima das práticas e proposições teóricas do movimento, o filme me atinou não apenas para a multiplicidade de nossas pautas como mulheres, mas principalmente para os nossos pontos de desconhecimento dentro do movimento. Em entrevistas sobre a realização do filme¹, Larissa explica que foi comum que os espectadores ouvintes dissessem que nunca tinham pensado sobre a perspectiva das mulheres surdas na sociedade ou dentro do feminismo. Me insiro nesse grupo, ressaltando como o filme reafirma a importância de se compartilhar histórias e vivências através do cinema.
Nesse sentido, Seremos Ouvidas reitera a importância do cinema e seus espaços de partilha, tal qual esse festival, como aliado das lutas. O filme de Larissa, nos possibilita pensar o cinema em si e o espaço-tempo que ele instala, não a partir de um didatismo, mas sim, conforme o próprio título demanda/profetiza, como um lugar de escuta atenta e partilha de experiências.
Assim como eu, a diretora do filme também é uma mulher ouvinte, que teve contato recente com o feminismo surdo. Larissa explica que as mulheres filmadas não compartilharam apenas suas histórias com o filme, mas também proposições e ideias de enquadramento e cortes que abrangessem toda a expressão de sua linguagem. Após filmadas, as imagens foram compartilhadas com elas durante todo o processo de montagem, fazendo com que mesmo sendo dirigido por uma pessoa ouvinte, o filme pudesse, de fato, se comunicar com as não-ouvintes.
Nesse sentido, a existência do movimento feminista surdo é apresentada no filme por múltiplas mãos, movimentos e significantes. Aos lado desses múltiplos gestos e sentidos, Larissa insere o ato de moldar, esculpir, nos mostrando que a força da expressão está em muitos atos para além da voz.
Falar e ser ouvida é uma agenda de todas as vertentes do movimento feminista, porém a força dos depoimentos trazidos por Larissa, não falham em nos mostrar como essa pauta toma outras proporções, é acentuada e ressiginificada dentro das demandas do movimento surdo. Ao escolher não produzir nenhum tipo de dublagem ou sobreposição de som para as falas de Klicia, Gabriela e Celma, a diretora instaura um quase silêncio que se transforma em atenção central para a linguagem e a expressão daquelas mulheres, para o que elas têm a dizer. Em tempos pandêmicos estamos enfrentando o desafio de receber os filmes em dispositivos outros que não as salas de cinema. Nesse sentido, penso na experiência forte e impactante que seria ver os filmes no silêncio e no mundo aparte que as salas criam. Sinto que são nesses arranjos fílmicos criados por Larissa que a demanda/profecia do título tem lugar para se concretizar.
A ausência de efeitos sonoros só é quebrada pelo filme com a entrada de imagens gravadas em manifestações feministas. O filme percorre rostos, cartazes, pinturas, expressões e gritos de dezenas de mulheres que juntas ecoam suas pautas. Esse gesto da montagem parece apontar para a força estratégica dos movimentos sociais e da coletividade. Se fazer vista e ouvida é por excelência uma tarefa comum, coletiva. É pelas mãos e vozes de múltiplas mulheres que a demanda/profecia de Seremos Ouvidas parece se cumprir.
[1] Entrevista concedida por Larissa Nepomuceno ao 9º Olhar de Cinema (2020) https://www.youtube.com/watch?v=q8fcj2dKNWY
este texto foi produzido como parte da Oficina Corpo Crítico – Experimentações Críticas por um Cinema Implicado, ministrado pela crítica Kênia Freitas, durante o 22º FestCurtasBH.
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