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  • Coletivo

Intervir no mundo pela sensibilidade

Uma conversa a respeito do

Programa 1 - Competitiva Internacional


por Geo Abreu, Iakima Delamare, Giuliana Zamprogno,

Maria Sucar, Fábio de Carvalho Penido, Luan Santos,

Luiz Fernando Rodolfo, Ingá e Fabio Rodrigues.


Os efeitos do colonialismo sobre populações subalternas e povos não ocidentalizados emerge como uma das articulações produzidas no programa 1 da mostra competitiva internacional: seja no enfrentamento poético que entrevemos em May June July (2021, Kevin Jerome Everson) ou na tentativa de criar condições para visitar/deixar um território em disputa, ao qual pertencemos, como em Moonscape (2020, Mona Benyamin); uma certa continuidade de pensamento exclusivista e, mentalidade medieval da cavalaria europeia: seu cavalo e sua armadura como parte do que faz os cavaleiros fortes e desbravadores como em Al motociclista no le cabe la felicidad en el traje (2021, Gabriel Herrera), ou ainda a espionagem dos tipos subversivos deAninsri Daeng(2020, Ratchapoom Boonbunchachoke), que parece evocar - pois não podemos precisar a que tempo o filme faz referência - o passado de ditaduras militares que vivem a espreita de um retorno possível ao poder.


  • Apesar do tema recorrente - colonialismo, suas raízes e continuidades - os filmes trabalham a partir de uma quebra de expectativa na forma de abordar os temas escolhidos, seja numa certa indiscernibilidade na escolha do que não se diz ou não se explica em seus discursos/formas, seja pelo maneirismo na representação de cinemas clássicos, como a ironia sob a qual se funda Aninsri Daeng, mas também na inversão provocada, por exemplo, pelo choque entre texto e imagem em Al motociclista no le cabe la felicidad en el traje.


As figuras humanas emergem montadas por máscaras, patins e roupas que combinam com as cores de um movimento social marcado no chão da rua; em um estranho salão de piso xadrez, elas usam ternos, vestidos e maquiagens exageradas; embaixo de uma lona avermelhada que abriga do sol intenso da mata, o motoqueiro é ornado por seu capacete e demais equipamentos, mas também brilha-brilhas, buzinas e outras bugigangas como numa cerimônia de ordenação do cavaleiro medieval, cantada em versos tão antigos quanto a ideia de submeter populações pela força; no movimento furtivo, nas ruas banhadas em cores neonoir, a espiã usa um sobretudo e óculos escuros como disfarce. Ao invés de esmaecer no todo, as personagens carregam signos materiais, clichês trabalhados pelo excesso: maquiagens-máscaras, o brilho falso das luzinhas neon ou a escolha de um traje a partir das cores símbolos de um movimento.


Percebo que cada filme vai trazer isso de um modo inteiramente diferente, então não acho que é o caso de concluir algo a partir daí, ou unificar os filmes.


  • Fico pensando também se May June July não coloca essa questão geral ao seu próprio modo: o que acontece quando se monta uma dança de patins intercalada pelas imagens e sons de plantas e insetos? Há um estranhamento aí que solicita o olhar menos em busca de metáforas.


"Tem um vaga-lume dentro da sala de cinema", cochichou uma amiga. Eu não o vi, mas respondi: "na certa, pulou do May June July". Talvez a minha procura pelo inseto a partir dali me fez pensar na sessão pelo atravessamento do vagalume que parecia firme, intermitente, um "pequeno" incidir em cada um dos quatro filmes. Ponto luminoso do engajamento político que para ver seria preciso entregar-se à viagem de cada curta. Em May June July, o vagalume do político é o chão de protesto que sustenta os volteios e rodopios daquele que se diverte: para ler a frase de protesto, é preciso bailar no jogo dos filmes.


May June July articula sentidos sobre coletividade, ocupação de espaços antes interditados a certos grupos sociais e a natureza repetitiva dos ciclos que permeia tudo. A alegria tranquila do balé de patins pela Black Live Matters Plaza se contrapõe à força que produziu sua existência, da mesma forma que a imagem daquelas flores, entre o apogeu da beleza e sua degradação natural, parecem apontar a transitoriedade dos ciclos de luta popular que, de tempos em tempos, eclodem pelo mundo polinizando ecos e respostas, beleza e destruição.


  • Contrapõe-se mesmo à força que produziu? Acredito que sim, pelo menos se pensarmos sobre a violência que gerou os protestos e o sublime do balé pela rua, o que não significa dizer que patinar por aquela avenida não seja uma demonstração de força também.


  • (E se o político não for o vagalume, mas sim a escuridão que o esconde quando não há luz partindo de si?)


Pessoalmente, May June July me deu algumas pistas boas para pensar nos demais filmes. Vejo neles uma vontade, que retorna dos outros, de criar a partir de um irrepresentável (trazendo um pouco das conversas da oficina). Obras que partem muito dos reflexos do colonialismo, mas buscando novas alternativas a certas formas de apresentar um discurso, que não operem por uma lógica das certezas (do racional, talvez?). Nesse sentido retomo a cena do patins na Black Lives Matter Plaza, que acho apontar um pouco para isso. Se permitir dançar, improvisar, ensaiar tropeços com leveza, sem pressupor uma “fraqueza” de discurso político, ou no caso que ele estaria se apresentando com menos força. Pelo contrário, ver naquele homem negro patinando livremente de máscara um apontamento pra uma possibilidade de futuro muito fundada na luta que aquela rua evoca. Acredito que esse gesto que vejo na sessão de investir nas incertezas, implantar dúvidas, nos mover pelo estranhamento, há uma grande provocação (pegando emprestado o termo que o Fábio usou no grupo) ao espectador, e nisso, um potencial de mobilização muito interessante.


  • Grande provocação pelos pormenores significantes. Grande porque pequeno, talvez. Confronto da desgraça pela graça, seja o humor ou a dádiva.


  • Acho que essa questão das certezas fica borrada justo como provocação - o colonialismo e suas práticas como herança permeiam nossas relações ainda hoje. O programa instiga não só a refletirmos sobre como romper com essas heranças mas em como elas ainda nos habitam. Acho que isso é o que me fez lembrar das justaposições criadas pelo Arthur Jafa.


  • Percebo esse lugar de estranhamento partindo justamente da vontade de desordenar o conhecido, provocar rupturas nas representações já fabricadas. Pode o estranhamento recolocar as discussões políticas em outros fundamentos de experiência? Ou, em um momento de sociabilidade mediada via tecnologias em que a beleza parece ser condicionada por algoritmos e formatada a partir de harmonizações faciais, poderia o conceito de beleza ser colocado em questão como forma e conteúdo no discurso político?


Al motociclista no le cabe la felicidad en el traje coloca um conceito eurocentrado de beleza como questão política determinante para pensar o colonialismo, enquanto prática política social de dominação de territórios, assim como prática estética de dominação artística. Penso que muito da forma como a obra cria visualidades e composições se dá através de capturar determinados códigos visuais das pinturas renascentistas e barrocas. Percebo isso na forma de compor esse personagem colonizador em sua moto, com o corpo ereto e altivo, cabeça erguida e com uma iluminação que permite ver completamente a sua feição. Enquanto os personagens sem moto estão constantemente envoltos em sombras, cercados pelo breu, com pequenas brechas de luz que recortam alguma parte de seus corpos arqueados, sentados, cabisbaixos. E aí o filme utiliza esses códigos justamente para apontar como a representação de pessoas e a busca de uma beleza europeia na pintura renascentista é também gerador/fruto do colonialismo. E coloca tudo isso na chave da ironia e do estranhamento - a moto ornamentada com objetos luminosos que se torna (quase) uma nave-espacial. Porquê motos como signos de poder? O que seria essa tenda vermelha?


  • Penso, deveríamos experimentar o vermelho da tenda, a moto cavalo, etc., não como detalhes a serem interpretados que, talhados, resolveriam o todo. É um momento para substituir o porquê pelo como, talvez…


Uma torção pela fábula


No fluxo infinito da canção que permeia Moonscape, conseguir um passaporte da Embaixada Lunar parece ser menos delirante e muito mais possível do que o tráfego livre de um palestino. O plot “clássico” de Aninsri Daeng, que acumula referências ao cinema tailandês pós-Guerra Fria, é de uma espiã transexual que deve se disfarçar de homem cis para investigar um rapaz suspeito de subversão ao regime: usar sua própria voz, ao invés da dublagem imposta. Esses dois filmes parecem estar a toda hora medindo o absurdo; sua fábula é pura torção política da realidade, seja ela de guerra ou perseguição, no carrossel da própria cultura, da própria história. Mas, no fim, essa conta é sempre desigual.

  • Também há nesses dois uma tensão ficcional da política? E, talvez, uma torção da ficção pelo humor?


  • Sim, quando digo que a fábula deles opera através de uma torção política, quero dizer isso. Mas acho que você usou palavras mais precisas, eu trocaria "fábula" por "ficção" no meu parágrafo. Sobre o humor, acho que ele não “torce” sozinho, me parece que ele é manuseado ali com bastante traquejo em direção a uma "tensão política da ficção" ou a uma "tensão ficcional da política". Ia dizer que essas duas me parecem recíprocas, até me lembrar que há uma grande diferença entre, por exemplo, "politização da arte" e "estetização da política".¹


  • Sim. A série de trocas de emails em Moonscape está nessa ambiguidade de termos - "tensão política pela ficção" e "tensão ficcional da política". Nunca pensei que acompanhar uma troca de emails poderia ser tão engraçado. A graça na desgraça.


  • Walter Benjamin diferencia esses dois termos naquele texto famoso dele. Eles estão muito lastreados em uma discussão da época sobre as vanguardas artísticas europeias. Falando bem brevemente, uma “estetização da política” culmina na guerra, que é a mobilização dos recursos técnicos sem implicar numa alteração das relações de propriedade. E daí viria o flerte do futurismo com o fascismo. Em oposição, as importantes subversões dadaístas e surrealistas investem em uma “politização da arte”, já pela via do comunismo. Isso sai um pouco do nosso escopo, talvez, mas acho ousado continuar a discussão sobre esses termos sem considerar sua origem.


  • Mas penso que "fábula" parece, sim, um termo bom. Ora, o interesse do filme é também no campo do desejo, dos sonhos, da projeção das pessoas palestinas: sim! Mantém a fábula.


Tem outra coisa também. O que eu acho muito estimulante nesses filmes, e estenderia para todos do mesmo programa, é que esses desejos e projeções expressos na fábula não vão nunca na direção do escape, como poderia se pensar ou se esperar. (Moonscape não tem nada de "escapar" para a Lua). Acho que eles conseguem elaborar com muito refinamento a força dos pormenores e do "irrepresentável", como resgataram lá em cima, com comparações que só o atravessamento pela fábula traz.


 

[1](Quais seriam essas grandes diferenças? Não seria possível uma “estetização da política” - estética enquanto forma e possibilidades de utilização da linguagem - uma forma mais fugitiva e menos determinada de abordar a política em obras audiovisuais?)

 

este texto foi produzido como parte da oficina Corpo Crítico – Entre Políticas da Amizade e Ensaios da Traição, ministrada por Ingá e Fabio Rodrigues Filho, durante o 23º FestCurtasBH.

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