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Driblar o real: o risco enquanto processo

Não sei como começar esse texto.


Permanecer diante do ainda não escrito é um exercício de tatear algumas sensações que me inquietam. O que a cabeça não sabe, a mão parece dar conta.


Estou reverberando a partir das artimanhas e possibilidades que o curta Nunca Pare na Pista (2021, Thamires Vieira) se lança, assim como eu, no risco. Queria criar alguma relação ou referência intelectual com o conceito de documentário como se lançar ao risco do real, como coloca Comolli em um texto, que li na faculdade do qual me lembro apenas o título. Mas não esqueci dessas palavras: se lançar ao risco.


Rabisco: coloco aqui essa questão de pensar o risco também como verbo, riscar essas palavras e criar possibilidades de intervenção através do grafismo. Voltando ao filme, sinto que a obra dirigida por Vieira suscita algumas questões que me provocam de uma forma particular: a experimentação na construção de uma montagem que parece fazer desvios temporais, a ousadia de assumir a ficção como lugar de recriação do “real”, e, principalmente, colocar o risco do processo não como algo que precede o filme, mas que é o próprio filme. O processo enquanto prática e o projetar-se - seja para a cena dirigida por Thamires ou a apresentação musical de Amanda - como se jogar ao risco, de assumir imperfeições, uma vivacidade do desconhecido.


Como diz o personagem Emerson no filme Ilha (2018, Ary Rosa e Glenda Nicácio.): “O que o cinema quer da gente é coragem”. Guardo essa frase comigo, mas ainda sinto receio toda vez que faço um filme ou escrevo um texto. Receio de errar, de não ter autoridade para falar, de ser imperfeito e revelar as próprias fragilidades. Talvez se lançar ao risco e nunca parar na pista, como as personagens, seja esse ato de coragem.


O que seria a obra sem o processo que a percorre? O que seria esse texto sem o seu rascunho ou a efervescência de um desejo de escrever? Fico castelando sobre como o cinema em seus diferentes meios de atuação se configurou em cima de ideias de transparência, de ocultar o processo e criar uma falsa sensação de realidade em que qualquer aparato cinematográfico ou intervenção que não seja pré-definida em um roteiro, seja excluído da “obra final”.


Nunca pare na pista é ficção ou documentário? A inquietação implantada pela forma disforme com que o filme articula sua experiência talvez borre - ainda mais - essas duas categorias. Faria sentido, neste curta, essa categorização binarista? Talvez seja uma questão de se lançar nas potências de invenção que brotam no espaço intermediário entre essas duas categorias, a fim de buscar não um marcador genérico para a obra, mas justamente sua pulsação vital. Percebo um movimento de não se limitar aos códigos do realismo e nem mesmo das ficções tradicionais: a montagem costura tempos distintos em saltos sem continuidade, a narrativa é fragmentada como uma fractais, etc. Fluir entre as perspectivas dessa narrativa talvez seja um caminho para driblar o real: gingar com e sobre as possibilidades de fabulação - como exercício de imaginação prática - de si mesmo, de não aprisionar os personagens dentro de uma categoria incontornável. O “talvez” como a possibilidade de habitar uma ambivalência, uma abertura.


Thamires e Amanda são colocadas em sintonia e descompasso, mas juntas em movimento pelo que desejam. A obra começa, no ato de arriscar o que deseja ser. Ambas querem realizar seus objetivos e a parceria é via de mão dupla, é desentendimento e compreensão, confluência e divergência, mas o que parece mobilizar as personagens é justamente o ato de desejar e coragem de se projetar no risco - para além dos descompassos menores, como a composição da roupa com a parede colorida.


Em um dado momento, Thamires entra em campo e ajeita o cabelo de Amanda. Amanda pergunta se pode começar. Frente a essas intervenções e ajustes, me vem à cabeça a frase do Racionais Mc’s: “Só de pensar em matar, já matou”. Não que a frase caiba no contexto do filme, mas não paro de refletir sobre esse “pensar”, menos como uma intencionalidade comumente atribuída à autoria e sim como um lugar de imaginação e criação que pode ou não preceder o próprio ato em si, assim configurando o próprio fazer.


O projetar, se preparar, nutrir, desejar, como processos que já são em si criação e filme. Talvez seja o que estou fazendo nesse texto, arriscando para escrever e vice-versa. Existe um conforto paradoxal nisso, de se lançar no risco do indeterminado, na vivacidade de desconhecer o caminho que percorre, mas ainda assim continuar a jornada. Paradoxal porque conforto e risco parecem opostos, mas se jogar ao risco pode oferecer aconchego em lidar com as experiências e as pulsações de desejo de forma não estabelecida previamente.


A obra vai construindo pequenas aparições iniciais de Thamires para posteriormente colocá-la de corpo inteiro dividindo o quadro com Amanda. Existe uma cadência na forma como a Thamires se coloca em quadro, um jogo performático que ela embarca e envolve seu próprio processo de direção. Driblar o que se impõe como real para performar os desejos, navegar entre as brechas que se abrem na fissura dos tecidos narrativos. Transparecer o processo enquanto o torna também filme.


Existe uma confluência de latejos no fazer, na prática que é também processo, em ambas as personagens que as movimentam em caminhos diferentes, mas que pavimentam uma estrada compartilhada. Thamires anima a vontade de Amanda cantar e, com isso, arriscar. Por sua vez, a vontade de Amanda acende o anseio de Thamires em arriscar na realização do filme: compartilhar a coragem com alguém como quem partilha um segredo.


Esse texto-processo é, portanto, inspirado na tenacidade e ousadia de Nunca pare na pista.

 

este texto foi produzido como parte da oficina Corpo Crítico – Entre Políticas da Amizade e Ensaios da Traição, ministrada por Ingá e Fabio Rodrigues Filho, durante o 23º FestCurtasBH.


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