Há uma falsa sensação de entrega em Você já tentou me olhar nos olhos? (2020, Tiago Felipe). Quadro a quadro, um jovem negro se despe, dos sapatos até a camisa, enquanto alguém respira como se estivesse bem próximo ao microfone, de modo um tanto ofegante, como se olhasse a cena. É um movimento duplo que está em cena, ao mesmo tempo que Tiago se expõe, timidamente, é ele também que dá voz a esse desejo presente fora da tela.
Mas o quê exatamente está sendo desejado? “Nossa voc... seu corpo é muito bonito'', não se trata de alguém que olha de verdade para o outro, mas um olhar que “fatia” a pessoa, e nem mesmo a considera como tal. Na verdade, somente um corpo, com a fotomontagem isolando cada pedaço, nunca permitindo que um todo seja construído, colocando o espectador firmemente na posição de quem desumaniza, já que a narração fica por conta de quem observa, e quem observa, nesse caso, somos nós.
A narração em off evidencia essa impessoalidade de quem narra/observa, já que, apesar de ser uma presença, ela não está ali, uma “não-presença”. O desejo existe, mas não o envolvimento, os comentários evitam qualquer espécie de aproximação, o “você” logo é trocado por “seu corpo”, e essa posição de afastamento se intensifica conforme a narrativa progride, “melhor eu não dormir aqui”, diz. O corpo na tela só pode ser chamado de “delicia”, mas jamais tocado afetuosamente, ou encarado nos olhos.
Assim, há uma recusa nessa posição, com Tiago Felipe, ator e diretor, colocando seus olhos na tela certos momentos por meio de um flash frame, que irrompe na tela, forçando que aquele olhar seja encarado, não admitindo ser somente pedaços a serem desejados, mas que tenta criar uma conexão, por mais difícil que seja, de ambas as partes. A sensação é dupla, ao mesmo que é uma forma de resistência, também gera incômodo em quem assiste, os microsegundos de olhar piscam na tela, rompendo a lógica estática composta por planos longos até então, além de reconhecer a presença de alguém que olha, retirando essa “não-presença”. O retorno desse olhar, dessa forma que é sentida, mas não plenamente registrada, muito similar a sensação de fugir do olhar de outra pessoa, torna mais concreta essa voz que desumaniza, tornando ainda mais difícil esse “olhar no olho”.
“Mas nada sério, casual” diz a voz fora de campo, “cê sabe...”. Se o foco antes era somente no corpo, agora há um espaço para o indivíduo, destacando sua solidão, a cama grande demais para uma pessoa só, e a busca por uma nova companhia se inicia. Celular na mão, olho no celular, a pessoa que antes era tímida agora passa a se expor, com poses ousadas, eróticas. Teria esta pessoa aceitado essa posição de mero “corpo” para, assim, sanar a solidão?
Desejo, rejeição, solidão, em três minutos, Você já tentou me olhar nos olhos? articula muitos sentimentos, usando como matéria prima algo relativamente “simples”, o corpo do seu idealizador, sua voz e fotos, e sempre tendo como base essa tensão da intimidade impessoal, que olha sem verdadeiramente ver aquele que deseja. A pergunta título é presente do início ao fim, até se explicitar verbalmente nos momentos finais, quando finalmente o olhar permanece em tela, quase como desafio, recusando a posição de ser somente uma bunda, peito ou boca, mas como alguém que olha de volta.
este texto foi produzido como parte da oficina Corpo Crítico – Entre Políticas da Amizade e Ensaios da Traição, ministrada por Ingá e Fabio Rodrigues Filho, durante o 23º FestCurtasBH.
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