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  • Coletivo

Exercícios de um corpo crítico

Nota:

Escrever um parágrafo (até 8 linhas)

colocando em correspondência dois filmes

vistos no festival, de mostras ou programas

diferentes. Relações insuspeitas, podem ser

por semelhança, contraste, sussurro, espanto,

etc…


Por Adler Correa, Diego Silva, Fábio de Carvalho Penido,

Geo Abreu, Giuliana Zamprogno,

Guilherme Veiga, Iakima Delamare,

Luiz Fernando Rodolfo, Maria Sucar,

Ingá e Fabio Rodrigues.



“(Como conversam as coisas

com as coisas?)”

Eduardo Jorge


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Conversas em cima de um passeio pelo Google maps. Acesso e Dreams Under Confinement nos convidam, ambos, a um jogo de recriação de memórias. Enquanto o primeiro o nos entrega relatos de pessoas LGBTQIA+ nas ruas de São Paulo, o segundo reorganiza os áudios da rádio policial de Chicago a caminho de repreender os protestos do Black Lives Matters, acompanhando uma simulação dos trajetos, que desaguam todos na terceira maior prisão do país. Corpos ameaçados que resistem, seja no afeto ou no confronto, dentro da esfera pública, pelo direito de sair de casa e poder regressar.


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“O que é que vocês vêem que quem mora no centro não vê?”. Correspondência fílmica: Ano 2020 - Um de vermelho e um de amarelo. No primeiro, as câmeras distribuídas coletivamente criam uma veloz dinâmica que coleciona paisagens, trechos de conversas, correrias, partidas de videogame e canções. No segundo, o jogo de cena proposto é de destacar, a partir do ponto de vista panorâmico da quebrada, os pequenos acontecimentos, as ruas e suas movimentações. Todo tipo de situação que, observada a partir da distância cultivada entre a câmera e os espaços, se faz, por isso mesmo, ainda mais intrigante. São oportunidades para zoom ins e zoom outs, dublagens, intrigas e vinhetas cômicas. Por mais diferentes que sejam as estratégias, o que se elabora é da ordem da intimidade, de construir estranhamento diante do cotidiano, do nosso e dos outros, mas entendendo que o mundo e sua construção é tarefa partilhada.


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Acho interessante a maneira criativa como os filmes Moonscape e Aninsri Daeng inserem seus comentários políticos em storylines e estéticas complexas, sem diminuir sua importância mas sem fazer com que o comentário político seja o filme em si. Fico pensando se isto teria a ver com o fato de a Palestina e a Thailândia não terem absorvido tão fortemente o modelo de organização política das pautas identitárias como tem sido no Brasil e nos EUA, onde encontramos, atualmente, muitos filmes centrados em performances, com estéticas e roteiros muito simples (a exemplo de Búfala). (Não faço, aqui, juízo de valor, apenas um comentário sobre diferenças estéticas e narrativas entre os filmes. Gosto muito de Búfala, por exemplo).


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Ouvem-se estrelas


Nas Profundezas da Maré e Suellen e a Diáspora Periférica desenvolvem entre si uma aproximação sobre trânsito de informações e pessoas, às dinâmicas impostas por um capitalismo informacional que nos obriga a aceitar abusos sob o disfarce da melhor escolha possível. O uso desobediente de imagens produzidas por autômatos, como o Google Earth e seus mapas georreferenciados ou a reelaboração de memes se juntam a imagens de caráter mais afetivo - como gifs e fotos de família - pontuando questões políticas que estão no cerne desse trânsito incessante ao qual somos lançadas, alheias a uma vontade genuína, em busca de um lugar que não existe mais.


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“com a orelha colada à terra

escuto os passos do amanhã”


Escutei em algum lugar que um filme deixa sempre uma marca na tela em que ele é exibido. A tela, coleção de momentos, guarda e contamina. Quando vi (não estou certo que esse é o melhor verbo) Ficções sônicas algo do corpo, das sensações, do fora, da diferença fundamental se apresentou. Próximo, penso, do Rua Ataleia. O primeiro todo audível, vertiginosamente sonoro, o segundo indecifravelmente dialogável. Qual modalidade de tal proximidade? Arrisco dizer que é da ordem do fantasma, mais que o sonho. Teria a escuridão do filme de Grace Passô contaminado a pouca luz do filme de Novais? O certo é que "fantasma'' é outro nome para aquilo que se entrevê quando, diante de um filme, já sabemos que não sairemos os mesmos. Fantasma = existência viva, sem contorno, que aparece ali entre o grão, a luz, a escuridão, o indiscernível e o mensurável do acontecimento.


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Um mundo de cores fortes, vivas e pulsando movimento. Outro preto e branco, estático. Um corpo que se move com o vento, que parece ser ele próprio uma força da natureza. O outro tímido, fragmentado, que se expõe com reticência. Nada mais oposto a Búfala do que Você já tentou me olhar nos olhos?, além dos elementos citados previamente, tratam também de modo bem diferente o olhar de seus personagens, praticamente ausente no segundo, mas que surge aqui e ali como forma de resistência à desumanização de um olhar que “olha sem ver”, enquanto no primeiro curta ele é foco constante nos quadros, onde mesmo diante dos movimentos da performance em cena, eles nunca saem de vista, encarando fortemente a câmera que observa. Mesmo quando saímos do sonho para o cotidiano, essa preocupação permanece. É interessante pensar como esses dois curtas, tão diferentes, lidam (ou comprovam?) com o velho clichê de “os olhos como as janelas da alma”.


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Existe alguém com quem o Eu fala. Esse alguém impossível, esse alguém que emerge vez por outra em fotografias, alguém que já não conheço mais, que ainda estou por conhecer, mas com quem já me encontrei faz muito tempo. Suellen e a Diáspora Periférica e DOIS são filmes que refazem o percurso de encontrar-se com outra pessoa. A imagem deixa uma réstia na gente, uma lembrança, um passado. Diante dos próprios olhos as personagens manuseiam a ausência sempre-presente. Mondzain nos dizia "A imagem é o registro da aparição sob o regime da desaparição".


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Em Ano 2020, jovens de uma região periférica de Ouro Preto registram pequenos vislumbres de suas vidas diante de uma situação impossível. Juntos, os jovens costuram uma linha nesse cenário a partir da conversa com a câmera com a qual nem estão acostumados – como um deles diz em uma das cenas. Em Rua Ataleia, as imagens surgem também de uma situação de impossibilidade da imagem, com a queda de energia negando a presença da luz. Mesmo assim, ambos os filmes conseguem lidar com o impossível, olhando ao redor e encontrando luz: na vela, no asfalto e na família que tão forte aparece em cada um dos filmes.


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Interessante a percepção geral sobre o festival que há muitos filmes que trocam o “como” lidar com certas questões através do cinema. De cara me vem à memória uma obra que justamente me parece não fazer isso. Como respirar fora d’agua parece ser fruto de um certo deslumbre com a possibilidade de filmar com recursos, mas aposta em locais bem seguros na hora de criar. O grande apuro técnico e performance de sua protagonista não são suficientes para dar corpo a um curta que constantemente interrompe sua personagem num jogo que move muito pouco para além de reencenar a violência dentro de uma ideia bem quadradinha de “filme ficcional”.

Em vias outras - muito mais em linha com as trocas do “como” - temos Um de vermelho, um de amarelo, curta realizado a partir de uma oficina em que dois garotos brincam com as capacidades técnicas de um zoom apontado para diferentes partes da cidade. Conforme vão encontrando essas figuras distantes, eles se põem a dublar essas pessoas, nos falando muito de si mesmos nesse processo de projetar suas vozes no outro. Diferente de Como, este filme se descobre no seu processo de feitura, onde é quase palpável o quanto os garotos estão se divertindo com a experiência da câmera na mão. Se essa descoberta se enquadra numa ideia prévia de “cinema” ou não, pouco importa. Tirar uma brisa com a possibilidade de ver o que está longe já trás consigo seu próprio encanto.


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Como elaborar as experiências de pessoas pretas de uma forma mais fugidia, delirante, onde o “como” se coloque enquanto figuração de sensibilidades estéticas não normatizadas? É o que parece ressoar das relações de enfrentamentos entre Você tem olhos tristes e As vezes que não estou lá. O primeiro, narra a história de Luan, entregador de aplicativo que está em constante enfrentamento contra as violências raciais que perpassam suas relações trabalhistas e pessoais. A construção narrativa é permeada pelo excesso e pelo exagero de tentar capturar de forma direta os gestos racistas, seja do cliente ou da tia da namorada. Enquanto no segundo narra-se a história de Rossana, fragmentando a narrativa em uma série de recursos estilísticos que abordam questões íntimas de saúde mental de forma mais fugitiva, mas assumindo as problemáticas com seriedade.

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Abdução e Gargaú apresentam formas de lidar com o trauma, de pensar as coisas que se deslocam e fazem a realidade parecer estranha. Abdução vai pela via da ficção, do absurdo, do fantástico. No seio das relações familiares e de amizade, o protagonista Vovózona rodopia entre corres e bicos. Ele se sente perseguido, suspeita de ETs, e um dia desaparece. Abdução como alternativa ao fim trágico de muitas vítimas da violência policial, mas sem deixar essa denúncia passar batida — trauma no subtexto. Em Gargaú, a viagem é para um lugar que não é tão longe quanto a quilometragem que dizem; os amigos recentes são apáticos, sem boas maneiras à mesa, enquanto a avó frita mandioca ao fogão; e a todo tempo vemos essas atuações "forçadas", desnaturalizadas, da quebra do pacto ficcional que não é celebrada. Trauma no subtexto: morte da mãe.

 

este texto foi produzido como parte da oficina Corpo Crítico – Entre Políticas da Amizade e Ensaios da Traição, ministrada por Ingá e Fabio Rodrigues Filho, durante o 23º FestCurtasBH.

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