Neste exercício nos propomos a escrever
cartas, conscientes de que elas seriam
extraviadas, de modo a construir espaços e
diálogos intermediários destinados a alguém,
alguma coisa ou um recorte dessa comunidade
de cinema. Como escreve Vinciane Despret,
“cartas são um testemunho material de laços, e
elas fabricam laços um pouco excepcionais,
dado que são perenes e que cada leitura as
reativa”.
por Geo Abreu, Giuliana Zamprogno, Maria Sucar,
Fábio de Carvalho Penido, Luan Santos,
Luiz Fernando Rodolfo, Ingá e Fabio Rodrigues.
[carta 8]
Curioso,
poucos filmes me tocaram tanto nos últimos tempos quanto um que fala justamente do toque - ou, se quisermos, da impossibilidade do toque. Isso parece demasiado próximo à pandemia, mas não se trata disso… é menos o outro como um perigo iminente, uma ameaça de morte, do que como apesar de tudo aquilo que chamamos “humano” é outro nome que se dá a esse desejo de ser gente, de abraçar, de precisar de alguém, de precisar daquilo que não se é e nunca será.
Na verdade, aprendi de modo sensível, ali, diante daquela filme, que para tocar não é preciso tocar. Confuso? Se você o tivesse visto, talvez um plano de comunhão se fizesse. “Aprendi”. De certo, um filme ensina. Ensina porque toca. Lição de pedra.
Dois quadros alternados, textos espaçados pelo quadro de imagem, arquivos de outros filmes… é tão dolorosa concretude clínica que faz, ao mesmo tempo, delicioso estudo de sintomas. repetir. perscrutar…
dificilmente amaria esse filme sozinho, dificilmente amaria esse filme em casa. Quero dizer com isso, para amar, é preciso do mundo, é preciso correr perigo, ser menor.
quero dizer, é preciso dar um jeito de tocar quando não se pode. nem que seja partilhando aquilo que nos toca.
lembras? tem um poema da Ana Martins Marques que diz da mesa: “porque uma mesa é uma espécie de chão que apoia os que ainda não caíram de vez”... esse filme que falei me tocou na mesma intensidade que esse poema. o anteparo da mesa, o álibi da bolsa. não se trata aqui de sinonímia é antes questão de toque.
um acontecimento é, em alguma medida isso, temporaliza o tempo. outra expressão para: nos faz pisar no chão do agora. Mesma frase que falei pra ti no banco da praça do canhão.
mas o acontecimento é outra coisa também: é corte.
saltemos.
com carinho,
qualquer um.
*
[carta 12]
Capivara,
Será que você já andou pelo centro da cidade de Belo Horizonte? As avenidas largas na beira do Cinema Humberto Mauro me lembram toda essa estrada que hoje ficou entre eu e você. A estrada que percorri enquanto assisti Dois sapatear no ritmo de uma distância. Você sabia que nem toda distância tem o mesmo ritmo, não é? Hoje quando você chegou no festival e teve aquela vontade súbita de entrar numa sessão da qual você não soubesse nem a sinopse.
Depois de tantos programas vistos com a coluna encurvada de frente para o computador, fez toda diferença adentrar uma sala de cinema, ainda que fosse para apagar do jeito que você apagou. Estava tão escuro alí dentro. Enquanto o filme era projetado, sonhei que você me dizia “não consigo mais sustentar” era aí que eu pegava na sua mão e a gente atravessava uma estrada até a Pavuna, São João de Meriti, Suellen e o Atlântico. Deixa eu te contar: quando acordei o filme colocava duas fotos em relação, de novo e de novo. Duas gerações transmitidas por uma postura, um modo de encarar ou fugir do olhar da câmera. Você já tentou me olhar nos olhos? Aqui numa retina que a 24 quadros por segundos te diz: você não está só, companheira.
na força do ódio,
com amor,
este texto foi produzido como parte da oficina Corpo Crítico – Entre Políticas da Amizade e Ensaios da Traição, ministrada por Ingá e Fabio Rodrigues Filho, durante o 23º FestCurtasBH.
Commenti