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Entre pessoas, um filme…

As amizades são espaços privilegiados para as insubmissões: são ingovernáveis em suas emergências, multiplicidades e práticas. Sua força reside justo na impossibilidade de controle dos poderes sobre os afetos que surgem nessas relações. São laços que nos impelem à vida – uma forma de estar junto, de estabelecer uma relação ética com o Outro, em que o Outro é importante; são espaços de refazimento – uma dessubjetivação no coração mesmo da sensação mais íntima de si, como recorda Giorgio Agamben. Retraçamos caminhos, percursos e desviamos das investidas do poder.


O Programa 1 da Mostra Competitiva Minas reuniu uma série de filmes de distintas cidades do estado. A sessão – marcada por uma sala de cinema povoada, após um hiato de dois anos – parece nos dizer dos encontros com as diferenças (de pessoas, de formas, de pontos de vista), das amizades e de um fazer político que se expressa a partir dos laços. Algo vislumbrado em um público muito ativo, que comumente interpelava as imagens que se faziam presentes. E em uma aparição do político a partir do diálogo com a alteridade e por experiências de ordem doméstica/íntima, como percebido nas estratégias de Interior e O que não vejo quando olho para o céu, cuja força reside justo nos encontros que provoca.


Apesar da defesa da marca dos vínculos e da intimidade como espinha dorsal da sessão, o filme que abre o programa, Rachocracia, de Artur Ranne, evoca uma sociabilidade marcada pela amizade, mas também pelo conflito. Existe uma tensão, uma espécie de partilha mediada pela desconfiança – reforçada em alguns recursos formais da materialidade fílmica: alguns sons, alguns movimentos de câmera, como nos rompantes que antecedem a corrida. Um filme-alegoria que evoca um sistema de poder.


O filme Interior, de Elisa Mendes e Maria Lutterbach, nos apresenta uma espécie de tensão delicada entre as práticas normativas da medicalização alopática, com os saberes tradicionais de uma medicina das plantas; percebida através de vivências de mulheres de Ibitipoca. A aparição das plantas-curativas e a discursivização de um saber ancestral, é posto em articulação com os diagnósticos narrados por uma das mulheres. Sem que haja uma resposta fácil, ou que se parta de um binômio normalização x aparição das vidas, o filme se encerra em uma espécie de oposição narrativa. A tensão delicada, contudo, parece ser suspensa à medida que é exposta, em carne viva, uma tragédia de fundo.


Seguimos a sessão com as interpelações de uma usina siderúrgica na cidade de Ipatinga, em O que não vejo quando olho para o céu, de Iolanda Depizzol. A força motriz é dada em uma série de vídeos gravados com o avô da realizadora – de modo que vida privada é trampolim para as investigações de uma questão de ordem pública. O relato íntimo e as imagens de arquivo dão o primeiro tom indicial do filme: a horta acidificada em função da água contaminada, o posterior excesso de fuligem nas superfícies da cidade, a empiria de um céu excessivamente vermelho e a compartilhada desconfiança em relação aos medidores de qualidade do ar prefiguram e reforçam o poder e presença do extrativismo que marca um território. Pergunto-me, contudo, se a escolha da narração, de uma voz em off que media todo o filme, intimiza em excesso, de modo que o filme se sustenta por uma espécie de ultraempiria, que torna um pouco mais delicada sua articulação com o “público”.


Por fim, CONTRA-MONUMENTO CENA #1 é uma realização do projeto Olhares (Im)possíveis, na cidade de Ouro Preto, com marcada direção de Arthur Medrado. A experiência da pandemia de COVID-19 parece alinhavar alguns dos percursos elegidos no filme. Em uma espécie de cartografia de deambulações por imagens de natureza diversa, vemos sujeitos articulados costurando territórios e refazendo enquadramentos consensuais. Apesar de certo hermetismo – em especial quando enfrentamos imagem e texto nas cartelas que se interpõem entre as sequências –, o filme parece reforçar o fazer para e entre uma coletividade. Um filme-contra-monumento que desloca, refaz e desarticula um fazer narrativo.


Por fim, se é possível pensar em uma ética da amizade que se inscreve na sessão, penso que isso se dá em algumas linhas de força que se deixar entrever: a convivência, as co-existências, a co-habitação. E, se a amizade carrega essa potência dessubjetivante, que nos permite ver e perceber o mundo desde outros pontos de vista, penso que a sessão revela esse jogo justo nas multiplicidades dos laços, das relações, na encenação das horizontalidades.

 

Este texto foi produzido como parte da oficina Corpo Crítico 2022 – Um Braseiro: "Quando um muro separa, uma ponte une", ministrada por Ingá Patriota e Fabio Rodrigues Filho, durante o 24º FestCurtasBH.

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