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Os doidão da leste

É o lado leste do mapa, tiro pa' caralho, bala pa' caralho

Mataram mais um, caralho, esse presunto não é de comer

Quem ouviu a história também 'tá na história

São várias versão da história

Pra que se envolver?

Djonga (2017)


Conhecida por seu "charme", por seus bares e pela arquitetura que resistiu ao passar do tempo, a zona leste belorizontina é apresentada sob outra perspectiva pelo rapper mineiro Djonga. O primeiro verso da música “Heresia”, faixa que carrega o título de seu álbum, indica uma sócio-geografia caótica e violenta que atravessa aquela área. Suas charmosas ruas são contrastadas por uma realidade obscura, marcada por processos de gentrificação que colaboraram na formação de grandes favelas e no aumento de pessoas em situação de rua que transitam e ocupam este território[1]. Assim sendo, a produção de Djonga e outros artistas da “ZL” instituem um olhar herege destes sujeitos para este local.


É com o gesto similar ao de Djonga que Ewerton Belico e Marcio Abreu nos apresentam a este território. Os filmes A Memória Sitiada da Noite (2021) e Febre (2022), presentes no terceiro programa da mostra competitiva Minas, ousam em representar a leste a partir de suas penumbras e incógnitas, becos e vielas.


Partindo de diferentes retrospectos, a relação entre seus realizadores e a capital mineira é anterior a estes curtas. Seja no deslocamento do “baixo-centro”, título do filme anterior co-dirigido por Ewerton Belico junto a Samuel Marotta (2018), para a zona leste. Ou na relação do Grupo Galpão, residentes da zona leste de forte desenvolvimento no teatro de rua, a investigação dos espaços urbanos belorizontinos surgem de outros contextos e atravessam o território através de seu deslocamento e performatividade.


“Área de segurança”. A frase que preenche quase toda a tela do filme de Ewerton convida o espectador a adentrar em uma cidade oculta, restrita, em crise. Corpos sem nome que transitam, ocupam e se deslocam por entre as sombras noturnas são os traços que unem ambos os filmes ao ficcionalizar a face noturna da leste belorizontina.


Em A Memória Sitiada da Noite, o casal sem nome (interpretado por Robert Frank e Bárbara Colen) perambula pelo território de modo a elaborar uma relação incerta, indeterminada e, por vezes, vagarosa entre si e o espaço. Os corpos e gestos dos atores se movem de maneira paulatina, por vezes desajeitada, enquanto o ranger metálico das vísceras noturnas reposiciona essas personagens para um estado inerte “deflagrado pela cólera”[2]. Já em Febre, os corpos dos três casais presentes no filme refletem o mal-estar e a atmosfera febril que seu título carrega. Sua relação com o território é permeada pela imanência e pela ebulição de algo indistinguível. Interpretados por atores do Grupo Galpão, o deslocamento dos personagens é vertiginoso e aponta para algum lugar de incerteza e fatalidade, no qual as relações entre as personagens é desordenada e obscura.


Diante de suas particularidades, ambos os filmes trabalham a face noturna deste território de forma onírica e teatral. Os diversos fragmentos textuais, poemas, poesias e prosas interpretados por Robert Frank e Bárbara ou os questionamentos sem resolução recitados pelo Grupo Galpão ocupam a sonoridade da leste. Desta forma, essas múltiplas vozes que escapam da tela se constituem como uma memória coletiva daquele território.


Narradas majoritariamente por voiceover, essas histórias noturnas conduzem a narrativa (ou a fragmentação dela) para uma temporalidade similar: o limiar do fim dos tempos. A leste, portanto, configura-se como um teatro a céu aberto, um território vivo e instigante no qual cinema, cidade e alucinação transpiram na tela.


Os questionamentos “o que fazer diante do fim do mundo?” e “que história ainda resta depois do fim?” guiam os filmes a um estado de indeterminação frente a seu tempo. A iminência do fim ou sua posterioridade colocam o espectador diante de uma zona leste febril e em crise. A cólera do casal em A Memória Sitiada da Noite e o estado buliçoso dos corpos de Febre faz pensar que esta relação destes corpos transeuntes com a noite neste território é permeada pelo entre. Entre a luz e as sombras, entre a realidade e o delírio, entre o onírico e o real, entre apocalipse e epílogo.


Portanto, as relações sócio-geográficas ambíguas que atravessam os filmes dispõe a tríade entre cinema, território e noite. Seja na febre hermética do casal Robert-Bárbara; na memória restrita, sitiada, indeterminada nos corpos de A Febre ou nos versos hereges de Djonga, os doidão da leste é gesto performático de deslocar seus atores para um estado de delírio, perambulação e alucinação. No qual o território nada mais é do que o palco e nós, a plateia.

 

[1] A região abriga a segunda maior população em situação de rua da capital mineira. Ver mais em: https://radarlestebh.com.br/regiao-leste-e-a-segunda-com-mais-moradores-de-rua-na-capital/


[2] Como Mariana Queen Nwabasili escreveu na sinopse do filme para o FestCurtasBH.

 

Este texto foi produzido como parte da oficina Corpo Crítico 2022 – Um Braseiro: "Quando um muro separa, uma ponte une", ministrada por Ingá Patriota e Fabio Rodrigues Filho, durante o 24º FestCurtasBH.

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