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Olhar mais além: sobre ritmos e disputas na superfície das imagens

Crítica de Victoria - Black and Woman (1978), de Torgeir Wetal

 

Pele preta, sobrancelhas angulares, um brinco de argola, olhos ora semicerrados, ora mais atentos. Estamos diante de Victoria Santa Cruz, diretora de teatro peruana que nos é apresentada a partir de diferentes planos-detalhe. Um ritmo começa a soar ao fundo, mas ela adverte: a percussão parece inadequada. Em uma outra marcação, Victoria ergue o rosto suavemente e começa a performar um poema. Trata-se de um ensaio. Os primeiros versos fazem seu peito mover-se, como uma pequena pulsação. Entre uma estrofe e outra, a artista marca o tempo batendo palmas. A palavra negra, enunciada repetitivamente por ela, encontra reverberação nas vozes do coro de bailarinos que compõem o quadro da cena com a atriz-diretora. Ela ergue a mão, pede à percussão que pare e questiona o grupo. Victoria - Black and Woman (Torgeir Wetal, 1978) encarna a presença performática de Victoria Santa Cruz e convida-nos, assim como ela faz quando se dirige ao seu próprio coletivo, a dizermos ¡negra! em outra entonação.


Uma voz masculina em off atravessa a de Victoria, introduzindo informações gerais sobre ela ao espectador. Em seguida, passamos a acompanhar uma conversa entre a peruana e o diretor de teatro do Odin Theater, Eugenio Barba, um homem branco. O italiano pergunta e Victoria responde. Mesmo variando suas posições no espaço, os dois não chegam a ficar um de frente para o outro. Enquanto ele olha constantemente para ela, Victoria fala majoritariamente olhando para o extracampo. A dinâmica entre entrevistador e entrevistada está posta. No entanto, a força da palavra dela consegue contaminar o filme e seu tom de voz certeiro atrai a câmera para perto. Vemos em detalhes o seu rosto e os movimentos de suas mãos. Entre o diálogo, as percussões ressoam incessantemente. E perduram, assim como a palavra negra presente nos versos do poema.


Apesar da figura de Victoria Santa Cruz nos ser apresentada a partir da mediação de Eugenio e do olhar do diretor de cinema Torgeir Wetal, um outro homem branco, há algo que transborda. Todo o conjunto, amalgamado ao corpo imantado da diretora peruana, produz tensionamentos no diálogo com Barba. Ainda que o filme contenha uma certa gramática documental totalizante, em que os mediadores parecem se posicionar acima daquela pessoa a quem estão a retratar, a performance dela subverte-a. Victoria reverte a orientação das palavras com sua voz, sobretudo quando a entrevista, através da montagem, é colocada em relação com a troca entre ela e os bailarinos.


Um plano aberto nos leva a um homem que está dançando, fazendo movimentos de dobradiça com os joelhos, formando ângulos marcados. Nessa dança, o corpo varia de altura e, por vezes, fica próximo ao chão. Instrumentos de corda e percussivos dão ritmo à dança e as imagens dos músicos e dos dançarinos são alternadas com a entrevista, marcando o ritmo da montagem. Ela cria sua batida musical própria, assim como os tambores. Angulações e os pontos de vista da diretora peruana e do diretor dinamarquês, dos músicos e dos dançarinos, antecipam a performance que está por vir.

Entre giros e sorrisos, todo o grupo é orientado por Victoria Santa Cruz e se contagia com um ritmo cósmico. Para ela, há uma presença física do ritmo dentro de qualquer corpo sensível, algo ingovernável e insubmisso. Ela convoca: ¡Sentindo! ¡Sincero! ¡Buscando! Um plano aberto acompanha a dança de todos, mas a montagem abrupta transforma as imagens. O ritmo da dança e do filme aceleram. Por fim, ela faz um gesto lento com as mãos, indicando que os artistas cessem os movimentos, lembrando-os que é preciso retornar com calma e guardar aquilo que sentiram durante o ensaio.


O que retorna parece firmar-se num vigor musical da palavra:

¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!


A cada vez dita, a palavra ressoa no corpo de vozes.


O poema ganha matéria nos corpos de cada um que recita energicamente o poema. O ritmo volta a acelerar e multiplica a palavra ¡negra!. As palavras são ditas, uma após a outra, sem hesitação. Escapam a qualquer formulação restritiva. Ao dizê-las, os corpos dos bailarinos que formam o coro se movimentam com vivacidade e afirmam: ¡yo soy! O processo do ensaio e a montagem coincidem: o filme toma materialidade na medida em que a palavra torna-se corpo.


Conduzindo os ritmos, a presença da diretora e do grupo realoca a força dessas imagens para perto de si e mais além do que Torgeir Wetal poderia, talvez, sugerir. Em meio a isso, irrompe a imagem final – o olhar fulgurante de Victoria encontra-se com a câmera. Gesto transversal que faz perguntar por quem vê e é visto, atravessando as zonas de ambiguidade do filme com Torgeir Wetal e Eugenio Barba e trazendo para cena o mais além, extracampo que Victoria olha e convoca ao longo de todo o curta-metragem.

 

Este texto foi produzido como parte da oficina Corpo Crítico 2023 – Autorias em Disputa; ou a Crítica como Contaminação, ministrada por INDETERMINAÇÕES, durante o 25º FestCurtasBH.

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