MOSTRA ESPECIAL | CURADORIA POR TATIANA CARVALHO COSTA
• COSMOPOÉTICAS DO (IN)VISÍVEL #3 •
QuilomboCinema e poéticas da fuga
QuilomboCinema e poéticas da fuga
Tatiana Carvalho Costa
A sessão “QuilomboCinema e poéticas da fuga”, como o título indica, foi organizada a partir das variações da ideia de “fuga” apresentadas por Dènéten Touam Bona. Aqui, camadas que envolvem espaço, tempo e imagem são articuladas em diálogo com um pensamento em formulação no meu recente percurso, ainda inacabado, de pesquisa, no qual tento aproximar a noção de aquilombamento, em Beatriz Nascimento, às práticas cinematográficas de pessoas negras no cinema brasileiro contemporâneo.
Nascimento (2018, p. 290) nos diz de uma trajetória do termo quilombo, que nomeia formas de resistência desde a fuga do cativeiro no período colonial até adquirir um “papel ideológico e fornece material para a ficção participativa”. Na minha investigação, nomeio QuilomboCinema as práticas que articulam “processos agregadores e contra-coloniais que configuram um conjunto de ações empreendidas por pessoas negras”, compreendendo a presença dessas pessoas na realização, crítica, curadoria e pesquisa acadêmica. Meu exercício, nas análises e na escrita, é o de articular um pensamento e uma poética escurecidos que atravessa e é evidenciado por esse QuilomboCinema e que, por sua vez, se apresenta nos filmes. O escurecimento é compreendido, aqui, como uma prática descolonizadora que tenciona, nesse contexto, o esclarecimento intelectual moderno, colonial e neocolonial que constrói a ficção do sujeito universal.
A marronagem de Dèneten Touam Bona (2020, p. 16) relaciona-se diretamente com aquilombamento em Beatriz Nascimento, sobretudo a partir do que a historiadora nos apresenta de dimensão “transatlântica” da cultura negra; “profundamente polifônica”, essa noção se refere a um “conjunto desses territórios (...) e continua a irrigar as lutas contemporâneas por meio das práticas culturais (...) que, por reativarem a visão das vencidas e dos vencidos – sua versão da história, logo, da ‘realidade’ – subvertem a ordem dominante”.
Os comentários aos filmes que compõem essa sessão incorporam os exercícios de análise de filmes do QuilomboCinema em diálogo com o pensamento de Bona – e sua noção de cosmopoética – e de um conjunto de intelectuais negras e negros, num trajeto transatlântico das poéticas escurecidas.
Adeus, Cowboy!
“A batalha de imagens é a mais feroz, a mais implacável e, o que é pior, é contínua” (THIONG'O, 2007, p. 30 ). Ao defender o engajamento das literaturas nacionais africanas no contínuo processo de descolonização, Ngugi Wa Thiong’o ressalta a centralidade da linguagem na necessária resistência ao imperialismo. Sua discussão no campo da literatura se estende para o cinema: aliada à “descolonização do espaço político”, para ele é fundamental a “descolonização da mente”.
O Retorno do Aventureiro, média dirigido por Moustapha Alassane e lançado em 1966, é considerado o primeiro western africano. A pesquisadora Cristina dos Santos Ferreira aponta que, nos anos 1950, três filmes estadunidenses, a maioria westerns, eram exibidos por semana nas 220 salas da região norte ocidental da África. O filme de Alassane articula criticamente o imaginário coletivo impregnado de imagens e códigos dessa exterioridade cinematográfica neocolonial.
Um jovem retorna ao Níger, vindo dos EUA, e presenteia um grupo de amigos com roupas de cowboys. Eles formam um bando; com seus chapéus de abas largas, casacos com franjas e calças jeans, se impõem, sobre seus cavalos, percorrendo, em grandes planos abertos, os campos locais. Os jovens se renomeiam – Billy Walter, Black Cooper, James Kelly e Rainha Christina – e se aventuram pela paisagem da aldeia e seu entorno ao som de música country e do ricochetear de balas de revólveres. Travestidos de cowboys, eles se tornam violentos e são temidos por sua comunidade. Após o roubo de um cavalo e da morte de um dos rapazes, os mais velhos da aldeia se reúnem para dar uma solução para o problema que envolve seus próprios filhos, e simulam a morte do pai de um dos cowboys, o jovem Ibrahim. Sensibilizado, Ibrahim confronta seus amigos e o bando se desfaz.

Cristina Ferreira (2012, p. 245) conta da produção do média: “(...) o realizador propõe a criação coletiva com os que atuam no filme, discutindo sobre a experiência de produzir os filmes do gênero como os que os africanos assistiam nas telas do cinema de suas cidades.” Os nomes dos personagens são escolhidos pelos próprios jovens atores, a partir de seus atores e atrizes preferidos. A personagem feminina é deslocada do lugar de mocinha para ser uma destemida cowgirl. Na “apropriação do cotidiano coletivo da aldeia”, conflitos locais – como o roubo de um carneiro – também são incorporados à ficção.
Para além de uma aparente oposição aldeia/cidade, tradição/modernidade, segundo Ferreira, o diretor “produz uma bricolagem a partir da reconstrução local do próprio gênero fílmico”. Frente à imposição de uma ordem simbólica, pela predominância do cinema estrangeiro no continente africano, Alassane constrói o que Denetèn Touam Nona chama de “refúgio”, empreende uma “fuga”.
É preciso insistir nesse ponto: o refúgio não preexiste à fuga; é ela que o produz, o secreta e o codifica. A arte da fuga, de que a experiência histórica da marronagem representa apenas numa das modalidades, é subversão a partir de dentro, seja esse dentro a colônia ou nossa sociedade de controle – e por mais que ele nos pareça completamente fechado e sem saída. A fuga não é transgressão ilusória em direção a um fora transcendente, mas secreção de uma versão subterrânea – clandestina e herética – da realidade. Pois construir uma fuga não significa ser posto para correr. Pelo contrário, é fazer o real escapar, operar nele variações sem fim para contornar qualquer tentativa de captura. (BONA, 2020, p. 46)
O conflito do filme se dissolve por meio da astúcia dos aldeãos: “Agora, o jogo acabou... É Ibrahim, o filho exausto, que está sendo levado para casa pelo pai.” A imagem final, que apresenta um cavalo em plano próximo, é acompanhada de um comentário que se inicia como a lição de uma fábula, mas que torna fugidia a aparente moral ocidentalizada: “Cavalo roubado, cavalo esgotado, seu cavaleiro nunca lhe deu tanta emoção. Adeus, cowboys.” No entrelaçamento da simbologia em torno dos cowboys e do cotidiano da aldeia, elementos do western são fusionados às tradições locais, numa sátira à colonização do imaginário africano por um dos cânones do cinema estadunidense, desde dentro de seus próprios códigos.
Atualização de rotas de fuga
O experimento visual Phillis Wheatley, dirigido por Nesanet Teshager Abegaze, estreou em 2021. O filme compõe esta sessão quase como um interlúdio a negritar a energia da marronagem em sua dimensão transatlântica. Em seus dois minutos, ele performa um transe ritual em seu corpo de imagens, num “fraseado rítmico que opera distorções nos próprios corpos e no espaço-tempo” e que atravessa “o ciclo das metamorfoses místicas” (BONA, 2020, p. 30-31). O curta circunscreve um espaço-tempo de múltiplas camadas – espiralar, físico-simbólico, real-inventado – e se localiza no instável entremeio da travessia negra entre continentes, este lugar que, para Paul Gilroy (2012, p. 38), constitui-se numa “estrutura rizomórfica e fractal da formação transcultural e internacional” chamada “Atlântico Negro”.
Definido como “uma exploração do etiopianismo” e uma “conversação histórica que se estende em várias direções”, esse filme de Abegaze exalta o panafricanismo apresentando imagens de arquivo sobrepostas às de rituais etíopes, com uma trilha que entrelaça, numa predominância de sons de tambores e de reggae, trechos de discursos de Marcus Garvey[1] e de poemas de Phillis Wheatley. O espaço-corpo-filme, em suas múltiplas camadas, também se constitui num devir-Etiópia, um horizonte utópico da mítica resistência e libertação que aquele país africano representa para os povos negros do continente e da diáspora afroatlântica. Compreendendo a profusão de referências e a complexidade que esse filme articula, me atenho, aqui, a um de seus aspectos: esse devir-Etiópia que se evidencia, na forma fílmica, a partir do nome e da poesia da mulher que dá título ao curta.
“O que podemos então dizer de Phillis Wheatley, uma mulher escravizada, que não era dona nem de si mesma?”[2], pergunta a também escritora Alice Walker. Walker caracteriza a obra de Wheatley como marcada por “instintos contraditórios”, com “lealdade e mente divididas” num contexto ideológico que a forçava “a crer na ‘selvageria’ da África da qual eles [seus senhores ‘brancos ricos e idólatras’] a ‘salvaram’”. Nascida na África Ocidental, provavelmente em 1753, ela foi sequestrada e forçada a atravessar o Atlântico ainda na infância. Ela foi rebatizada nos EUA: seu primeiro nome é o mesmo do navio negreiro em que foi transportada e o sobrenome é o da família de Boston que a comprou. Aprendeu a ler ainda cativa e escreveu os primeiros poemas na adolescência. Já adulta, tendo conquistado a própria liberdade e conseguindo viver, ainda que precariamente, de trabalhos domésticos e de sua própria escrita, Wheatley dizia-se etíope.
Ela é considerada a primeira mulher negra a publicar um livro no Novo Mundo e seu poema mais famoso é On Being Brought from Africa to America (Sobre ter sido trazida de África para a América). Para a pesquisadora Renata Gomes, a escrita de Wheatley se dá com “as entrelinhas”. Seu público, naquela segunda metade do século XVIII, era branco e cristão e, apesar de uma parte ser abolicionista, ainda não estava estabelecida (como jamais esteve no Ocidente) a possibilidade do reconhecimento de uma mulher negra como plenamente humana. Em seu célebre poema, ela cita passagens bíblicas para, aparentemente, justificar a inferioridade de pessoas negras. Porém, de acordo com Renata Gomes, por meio da construção de “uma segunda voz, um segundo eu-lírico”, ela conseguia apresentar um “posicionamento claro de resistência contra a escravização e contra a catequização forçada de escravizados”[3]. Outro recurso utilizado por ela é o ritmo: pela repetição de sons e aliterações, ainda segundo Gomes, a autora imprime uma ironia à sua escrita e abre a possibilidade de outras camadas de significação, em rotas de fuga da aparente fatalidade de destino da condição de escravizada.

O ritmo do filme que leva o nome da poeta é marcado pelo som de tambores. Tambores rituais, na quase totalidade das manifestações culturais/religiosas africanas, têm a função de estabelecer a comunicação entremundos, entre diferentes dimensões espaço-temporais. Ao incorporar o discurso de Garvey e entrecruzá-lo com o reggae e as imagens do transe de pessoas na rua, a diretora evoca e refigura a libertação e a resistência – o devir-Etiópia – presentes na obra de Wheatley, reencontrando e reativando as rotas de fuga ancestrais traçadas pela poeta.
A ideia de ancestralidade, aqui, é compreendida com Leda Maria Martins, como “um contínuo processo de transformação e de devir”.
Na primazia do movimento ancestral, fonte de inspiração, matiza as curvas de uma temporalidade espiralada, na qual os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estão em processo de uma perene transformação. [...] Nas espirais do tempo, tudo vai e tudo volta. Para Fu-Kiau Busenki (1994:33), nas sociedades nicongo, vivenciar o tempo significa habitar uma temporalidade curvilínea, concebida como um rolo de pergaminho que vela e revela, enrola e desenrola, simultaneamente, as instâncias temporais que constituem o sujeito. (2002, p. 84)
O gesto do filme, portanto, não é o de resgate de uma força cristalizada no passado. Abegaze traz Wheatley ancestral, evidenciando o caráter espiralar do tempo do refúgio e da fuga. Um “continuum das resistências”, como nos lembra Bona.
O paradoxo da fuga do/no tempo
“Como fazer um filme sem o tempo?” Para Denise Ferreira da Silva, que dirige Serpent Rain em parceria com Arjuna Newman, esta é uma pergunta motriz. A noção de tempo é uma das questões principais no pensamento da realizadora/filósofa brasileira radicada no Canadá: o “tempo – ou uma certa, mas abrangente, concepção de tempo linear – está no centro da crítica do materialismo histórico e sua noção de valor que está no filme”. Para ela, “a força ética do tempo é talvez o mais importante obstáculo para um programa político que lide com os desafios do presente global, em particular a abrangência da violência racial e os mecanismos jurídicos coloniais que facilitam o extrativismo.”[4]
Serpent Rain fala de um tempo sempre-aqui e aponta para um futuro (im)possível. Como organizar uma ideia de tempo, num espaço de ação e num espaço fílmico, sem cair na tentação de representá-lo? Como lidar com essa noção no espaço filmável, espaço da vida-agora e no tempo linear captado pela câmera e (re)organizado pela montagem? A tentativa da dupla me pareceu ser a elaboração de uma forma fílmica que, consciente da inevitabilidade temporal da duração (no tempo fílmico), incorpora um senso espaço-temporal baseado numa noção ampla de ecologia (das imagens, inclusive) descolada de uma racionalidade ocidental de origem moderna, numa “experiência poética” compreendida como algo próximo ao que Bona organiza em torno da ideia de “cosmopoética”:
Na origem de toda espiritualidade e de toda especulação teórica, está a experiência poética: a apreensão do mundo como totalidade viva, a intuição de que todos os elementos que nos cercam, nos atravessam e nos compõem – o vegetal, o mineral, a água, o ar, as ondas magnéticas – se correspondem, se entrelaçam e formam um único e mesmo cosmos. A cosmopoética é a forma primeira da ecologia: uma ecologia dos sentidos e da imagine-ação pela qual pajés, ngangas, mães de santo, bruxas neopagãs e outros mestres do invisível estabelecem um diálogo obscuro, tecido de metáforas, com o conjunto de tudo que vibra. (BONA, 2020. p. 11)
Filmar esse tempo e esse espaço, a partir de uma “ecologia dos sentidos” é, portanto, trazer para a tela o invisível e incorporá-lo à própria estrutura narrativa. O filme de Silva e Newman traz quatro conjuntos de imagens entrelaçados e que dialogam com falas, músicas e outros sons mecânicos e de natureza. Ordeno, aqui, entre primeiro e quinto conjuntos para fins de análise, porque eles não são apresentados de maneira sequencial. Um primeiro é o de telas pretas com inscrições de trechos de um texto que se relaciona a um pensamento sobre tempo, espaço e as questões filosóficas que aparecem no segundo conjunto de imagens. Esse segundo conjunto compõe-se por uma tela preta que acompanha a voz da diretora em digressões – como, por exemplo, a crítica à maneira como o materialismo histórico marxista dissocia da estruturação do capitalismo a escravização de pessoas negras –; um terceiro traz planos com mãos negras manuseando um baralho de tarô; um quarto é composto por longos planos de o que reconhecemos como natureza – floresta/vento, mar e seus seres-movimento, entre outras presenças visíveis e invisíveis –; e o quinto apresenta imagens de atividades industriais num fetiche de automação que dispensa o humano. Há, ainda, uma imagem isolada, que dura cerca de dois segundos e que mostra, num flash que se fixa em nossa memória, a violência policial contra uma pessoa negra.
O entrelaçamento desses conjuntos evidencia um paradoxo ligado à percepção linear de tempo na duração que constitui o próprio filme e se relaciona com o desafio da filósofa em problematizar e complexificar a noção de tempo para além dos parâmetros modernos. O avanço do progresso moderno – na sua ilusão de um desenrolar linear, num sempre-adiante evolutivo rumo a um futuro – traz em si a destruição, a involução. O sempre-aqui que constitui paradoxalmente essa ideia de progresso é evidenciado, no filme, pelo que se apresenta, por exemplo, no quarto conjunto de imagens em micro-modificações do que está em permanente ameaça; essa ameaça é ressaltada pelo contraste com as imagens das tecnologias industriais e assombrada pelo flash da violência policial em sua marcação racial.
Des-captura
Um palco num teatro abandonado é o ambiente para um jogo com a auto mise-en-scène de três mulheres negras proposto por Everlane Moraes em Aurora (2018). Performances individuais ganham uma dimensão de subjetividades coletivas, múltiplas, que se impõem para além das possibilidades imediatas que imagens de mulheres negras evocam. Ao dizer sobre o filme,[5] Everlane conta que seu desejo era lidar com a solidão, o tempo e os conflitos dessas mulheres em monólogos interiores. Uma de suas inspirações para a construção das performances é Alma no Olho, de Zózimo Bulbul (1973). Mas, assim como o curta de Bulbul, Aurora não se restringe à representação e tampouco se trata somente de representatividade.[6]
“O que pode um filme diante desse tempo?”, pergunta a performer e pesquisadora Cíntia Guedes,[7] apontando para as armadilhas que nos mantêm num “cativeiro estético”. “Isso é um cativeiro que joga as nossas imagens sempre para um determinado esquema de representação. Meu corpo não consegue se desgrudar do signo da escravidão.” E ela responde à pergunta inicial com uma outra: “(...) como é que a gente para de responder à dor da maneira como eles esperam que a gente responda?”
O curta de Everlane Moraes condensa a latência de existências de mulheres negras em suas particularidades múltiplas, o que, numa abordagem mais superficial, poderia ser visto como um recurso de empoderamento. Porém, neste comentário e no contexto desta mostra, prefiro encarar o filme – e os gestos performados nele – como o que Bona chama de “subtração ao poder”. Poder e contrapoder, na contemporaneidade, se organizam em suas formas de controle e eliminação e parece não haver saída diante da onipresente da captura. Como lidar com o quase inevitável “cativeiro estético”? Um chamado às “táticas furtivas” da marronagem:
As táticas furtivas são táticas de des-captura: qualquer tentativa de captura opõe ao vazio. É essa potência corrosiva da marronagem diante dos aparelhos de captura e dos simulacros produzidos que chamo de fuga. E, por essa palavra, entendo uma forma de vida e de resistência que, longe do frente-à-frente espetacular da revolta heroica, opera na sombra uma retirada, uma dissolução contínua de si. (BONA, 2020, p. 48)
La ninã (Elizabeth Fuentes), La cantante (Mercedes Rodrigues), La señora (Crisálida Páez). Três gerações, três posicionalidades subjetivas que têm em comum traços de gênero e raça. Três temporalidades entrelaçadas no aqui-sempre da imagem sublinhado pela música que atravessa os espaços e afeta os corpos que reagem a ela, em uma dança introspectiva que as conecta. O jogo proposto pela diretora incorpora a auto-mise-en-scène das mulheres, em gestos de afirmação que constroem camadas de desimportância nos pequenos movimentos que desenvolvem na sozinhez do plano. Em outros momentos, o que se apresenta é uma relação tela/espelho, com quebra da quarta parede, que nos devolve o olhar: quem e como somos observadas?
O palco do teatro vazio em ruínas se revela ao final. Numa evocação ao revés, essa imagem dá a ver a linha de fuga criada pelo filme. Tática da marronagem, a criação do desaparecimento era afirmação da existência. O vazio, que segue a uma sequência de imagens de mulheres que se posicionam afirmativamente diante da câmera, sobrepõe, ao passado visível nas ruínas, o futuro de uma existência possível.

Afrografia da fuga
Realizado a partir de um projeto direcionado a municípios com até 20 mil habitantes, A Sússia é um documentário sobre uma dança que faz parte das tradições de uma Comunidade Quilombola Lagoa da Pedra, no interior do Tocantins. Este é o primeiro filme da diretora Lucrécia de Moura Dias: uma mulher quilombola que nunca havia se imaginado cineasta.
Na Sússia, a dança e o canto servem para pedir graças. Os moradores do lugar contam que um dos pedidos recorrentes era para interromper a “sequidão na roça”: “tinha vez que quando acabava de dançar a roda, já era debaixo de chuva”.
Pra fazer esse filme não precisa de muita pressa
Ô, sabiá... Lelê, sabiá, lá lá...
Nós queremos dar uma ajuda para o filme da Lucrécia.
Ô, sabiá.. Lelê, sabiá, lá lá...
Ouvida nos créditos iniciais, a música é entoada por um senhor que carrega, embaixo do braço, um pequeno tambor e, com uma das mãos, move a baqueta pelo ar, como se estivesse regendo a performance-evocação que abre e, na fabulação de Dias, faz existir o próprio filme.
O curta começa com a diretora abordando pessoas mais velhas da comunidade como se estivesse pedindo licença para o filme existir. Em uma casa de tijolos à vista, sentada à mesa com uma senhora negra de rosto enrugado e mãos fortes e em frente a um caderno e uma garrafa de café, Lucrécia Moura explica: “Eu queria fazer uma pergunta da época em que a senhora dançava.” Essa “época” se apresenta, “sem pressa”, no plano seguinte, com dois pares de pés negros que, em chinelas de dedo, batem ritmadamente no chão de cimento. A dança e o canto ganham os corpos no filme, a tradição se presentifica. O ritual que se anuncia nos fragmentos de movimento e música costurados pela montagem dá a ver os laços afetivos e a história daquele quilombo, bem como suas conexões com tradições afro-brasileiras mais amplas. No final, a roda se forma e, aos sons dos tambores, a comunidade se põe a cantar e a dançar no rito coletivo.
Por meio dos depoimentos, ficamos sabendo que a manifestação cultural foi retomada recentemente: “a gente tinha vergonha”, explica uma jovem, que revela ter sido influenciada pela igreja. Porém, ela mesma afirma a importância da recuperação dessa tradição pelos mais novos. A dança é “fruto dos nossos antepassados”, diz outro morador; e esse fruto-resistência está guardado nos corpos e é atualizado por meio do que Leda Maria Martins chama de “afrografia da memória”.
[...] o corpo, na performance ritual, é local de inscrição de um conhecimento que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia, na superfície da pele, assim como nos ritmos e timbres da vocalidade. O que no corpo e na voz se repete é uma episteme. Nas performances da oralidade, o gesto não é apenas narrativo ou descritivo, mas, fundamentalmente, performativo. (MARTINS, 2002, p. 70)
“A memória do corpo não é estática” completa Bona, “é motora, dinâmica, só se atualiza em gestos, em posturas, numa série de práticas corporais tais como a dança ou a música (...) E as resistências negras vão se desencadear precisamente a partir da reativação criadora dessa memória, a partir do ritmo, pensamento encarnado.” (BONA, 2020, p. 29-30).
Intercalada à dança, a diretora nos apresenta elementos do cotidiano da comunidade, a maioria em torno do alimento: o roçar, o bater no pilão, cozinhar, comer. Rituais coletivos. Nos depoimentos, moradores explicam que muitas pessoas de fora já estiveram por lá, querendo saber de seus hábitos e tradições. “Tudo foi feito aqui dentro em busca de recurso para a comunidade, e a comunidade não recebeu nada em troca sobre isso.”
“O aliado não é uma categoria estável”, nos lembram Jota Mombaça e Cíntia Guedes.[8] “Imagens de raça e representação se tornaram uma obsessão contemporânea. O tratamento da negritude como uma commodity criou um contexto social onde a apropriação da imagem negra por pessoas não negras não encontra limites” (HOOKS, 2019, p. 41). bell hooks nos chama a atenção para uma forma nada sutil de dominação travestida de representatividade. A imposição do que a autora chama de supremacia branca, na contemporaneidade, está presente na captura de pautas que supostamente positivariam a imagem de pessoas e culturas negras subalternizadas. A Sússia traz uma forma de resistência – uma fuga – a essa dinâmica. Construído desde dentro, o filme revela a consciência que a comunidade tem de si enquanto imagem e a recusa à apropriação. “Nós mesmos somos capazes de contar nossa própria história”, reafirma um morador, potencializando o que o filme tem de tomada para si da imagem e da palavra.
[...] entendo uma forma de vida e de resistência que, longe do frente-à-frente espetacular da revolta heroica, opera na sombra uma retirada, uma dissolução contínua de si. A fuga é ascese: arte paradoxal da derrota, um desfazer que se aplica tanto às instâncias de dominação quanto à sua reverberação no mais profundo de nós. Qual seria o sentido de uma vida marron hoje em dia? (BONA, 2020, p. 49)
A Sússia – dança e filme – desdobra, em sua afrografia, os sentidos de fuga e a afirmação da “vida marron”.

Tatiana Carvalho Costa é doutoranda no PPGCom/ UFMG e professora no curso de Cinema e Audiovisual do Centro Universitário UNA, em Belo Horizonte. Integrante do FICINE - Fórum Itinerante do Cinema Negro.
Referências
BARROS, L.M. e FREITAS, Kênia. Experiência estética, alteridade e fabulação no cinema negro. Revista ECO-Pós, v. 21, n. 3, 2018.
BONA, Dénèten Touan. Cosmopoéticas do Refúgio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020.
FERREIRA, Cristina dos Santos. “Moustapha Alassane, um bricoleur no cinema do Níger”. In: BAMBA, Mohamed e MELEIRO, Alessandra (orgs.). Filmes da África e da Diáspora: objetos de discursos. Salvador, EdUFBA, 2012.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência. Rio de Janeiro: Editora 34; Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2012.
GOMES, Renata Gonçalves. “A poesia de Phillis Wheatley enquanto resistência à escravização nos Estados Unidos”. In: LIMA, Tânia. [et al.] (orgs.). Griots – Literaturas e Direitos Humanos. Natal: Caule de Papiro, 2020. Disponível em: https://cchla.ufrn.br/site/wp-content/uploads/griots/GRIOTS-VL04.pdf. Acesso em: 25 set. 2021.
HOOKS, bell. Olhares Negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.
MARTINS, Leda Maria. “Performances do tempo espiralar”. In: RAVETI, Graciela e ARBEX, Márcia (orgs.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Departamento de Letras Românicas, Faculdade de Letras/UFMG: Poslit, 2002.
NASCIMENTO, Maria Beatriz. “O conceito de Quilombo e a resistência cultural negra”. In: Beatriz Nascimento quilombola e intelectual: possibilidades nos dias da destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.
THIONG'O, Ngũgĩ wa. “A descolonização da mente é um pré-requisito para a prática criativa do cinema africano?” In: MELEIRO, Alessandra (org.). Cinema no mundo: indústria, política e mercado – Volume 1: África. São Paulo: Escrituras Editora, 2007.
WALKER, Alice. Em busca dos jardins de nossas mães: prosa mulherista. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
O filme apresenta trechos do mais famoso discurso do jamaicano Marcus Garvey, Procure por mim na Tempestade. Garvey foi o primeiro presidente e fundador da Associação Universal para o Progresso Negro e Liga das Comunidades Africanas (UNIA, em 1914), teórico do nacionalismo negro e inspiração para o panafricanismo.
WALKER, Alice. Em busca dos jardins de nossas mães: prosa mulherista. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
GOMES, Renata Gonçalves. “A poesia de Phillis Wheatley enquanto resistência à escravização nos Estados Unidos”. In: LIMA, Tânia. [et al.] (orgs.). Griots – Literaturas e Direitos Humanos. Natal: Caule de Papiro, 2020. p. 227-244. Disponível em: https://cchla.ufrn.br/site/wp-content/uploads/griots/GRIOTS-VL04.pdf. Acesso em: 25 set. 2021.
Conversa entre Denise Ferreira da Silva, Arjuna Newman e Margarida Mentes para a plataforma Vdrome. Disponível em: http://www.vdrome.org/neuman-da-silva/. Acesso em Acesso em: 22 set. 2021
Em uma roda de conversa que participei com as pesquisadoras Janaína Oliveira e Kênia Freitas, publicada na edição 4 de julho de 2016 da revista britânica Another Gaze. Towards A Quilombo Cinema: An Afro-Brazilian Feminist Roundtable. Disponível em: https://www.anothergaze.com/towards-quilombo-cinema-afro-brazilian-roundtable/
Para essa discussão, ver: BARROS, L.M. e FREITAS, Kênia. Experiência estética, alteridade e fabulação no cinema negro. Revista ECO-Pós, v. 21, n. 3, p. 97-121, 2018.
Fala no debate Corpos Adiante: performatividade e corpos-ficção no cinema, na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes (jan./2019) publicada no catálogo da Mostra Tiradentes SP 2019 (p. 150).
Frase repetida na performance A gente combinamos de não morrer, de Cíntia Guedes e Jota Mombaça – Festival de Arte Negra de Belo Horizonte, 2018.